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quinta-feira, 2 de agosto de 2012

As dimensões da educação

As dimensões da educação

Artigo extraído do livro "Pedagogia Espírita" - 1ª Edição - Maio de 1985 - Editora Cultural Espírita Ltda - EDICEL.

A educação só se tornou problemática nos momentos em que se desligou da religião. Isso é visível nos momentos históricos de desligamento parcial, como no mundo clássico, particularmente no apogeu da civilização grega, e na fase de emancipação total que começa no Renascimento e vai encontrar seu ponto culminante em Rousseau. Enquanto as religiões incorporaram, em suas estruturas gerais, o conceito de educação como salvação e a prática educativa como catequese, não havia problema. Quando, porém, o pensamento crítico se desenvolveu, a ponto de atingir a própria substância da fé, retirando ao homem a base ingênua de certezas tradicionais em que ele se sentia seguro dentro do mundo, tornou-se evidente a necessidade de criação de sistemas educacionais autônomos e surgiu a problemática da educação.

O episódio dos sofistas, seguido dos esforços de Sócrates, Platão e Aristóteles, é bastante elucidativo desse fato. A transformação da estrutura estática do antigo estado grego na estrutura dinâmica do imperialismo de Péricles, como esclarece Jaeger, exige a “racionalização da educação política”, como “um caso particular da racionalização de toda a vida grega, que mais do que nunca se funda na ação e no êxito”. A educação supera os seus estágios familial e épico, ambos dominados pela concepção mítico-religiosa, para adquirir uma nova dimensão: a cívica ou política. Esse problema da “ação e do êxito” é também examinado por Marrou, que nos oferece um estudo do mecanismo de transição da educação épica para a técnica, na “passagem progressiva de uma cultura de nobres guerreiros para uma cultura de escribas”.

A reincorporação da educação à estrutura religiosa, que se verifica na Idade Média, não representa um retrocesso, porque se realiza num plano de enriquecimento conceptual. Quer dizer: a educação medieval, conquanto dominada pela concepção religiosa e submetida ao controle eclesiástico, já se processa numa perspectiva racional. As contribuições do racionalismo grego, do pensamento jurídico romano e do providencialismo cristão misturam-se nessa perspectiva, em que se elabora, desde o declínio do Império, essa fusão conceptual que, segundo Dilthey, “aflui como metafísica para os povos modernos”. A homogeneidade do pensamento medieval não era mais do que o resultado de um lento processo de caldeamento em que a educação também se caldeava em novas possibilidades formais. O processo histórico não se interrompe, mas prossegue, não mais em extensão, mas em profundidade, como assimilação. E na medida em que vão surgindo, nas linhas sucessivas desse processo, as dimensões espirituais do homem, a educação naturalmente se desenvolve em perspectivas dimensionais.

Esta possibilidade de encararmos a educação num plano de desenvolvimento progressivo, não apenas histórico, mas, sobretudo historicista, parece-nos bastante fecunda para melhor compreensão do problema educacional. A partir da educação primitiva, como simples forma de integração, passamos às formas religiosa e cívica, como processos de domesticação, para atingirmos os conceitos clássico e moderno de formação cultural em que as condições de imanência social são finalmente rompidas pelo impulso da transcendência espiritual. Encontramos assim uma dialética da educação que nos permite o processo educativo de maneira dinâmica, acima dos traçados rígidos da História como conseqüência de fases e das condições deterministas bio-psico-sociais.

Essa dialética talvez nos forneça os meios de que necessitamos, com tanta urgência, para superarmos o impasse em que se encontra o problema da educação em nossos dias, no entrechoque de tantas teorias contraditórias. Se pudermos encarar a educação como um processo de desenvolvimento dimensional da cultura, não como substituição de fases históricas condicionadas pelo tempo, mas de um processo que se serve do tempo, estaremos mais próximos de uma visão global do problema. Parece-nos, pelo menos, que dessa maneira poderemos superar a representação esquemática, fragmentária que hoje possuímos do processo, gerando posições diversas e contraditórias na sua enfocação teórica, para encontrarmos as linhas gerais de uma verdadeira Filosofia da Educação.


As dimensões do homem


É evidente que as dimensões da educação decorrem das dimensões do homem. Se o homem pode ser encarado, tanto espiritual como socialmente, numa perspectiva de sucessões dimensionais, então o processo educativo também será susceptível dessa visualização. E é precisamente numa teoria dimensional do homem que vamos buscar as possibilidades de uma formulação teórica da educação nesse sentido. Formulação, aliás, que pode levar-nos a maiores possibilidades metodológicas na colocação filosófica do processo educacional.

Apesar de termos nos referido a História e a historicistas, não é num historicista que vamos encontrar a teoria, mas no existencialista Jean Sartre com seu famoso ensaio de ontologia fenomenológica. Tanto melhor, pois esse simples fato reforça a nossa referência às possibilidades de transcendência do processo educacional. Embora Sartre tenha encontrado a transcendência em termos fenomenológicos no plano social, a sua teoria nos leva, por um impulso dialético, a superar a polaridade ontológico-social da educação. E essa superação vai nos fazer sentir as suas possibilidades num ensaio de Denis de Rougemont sobre o desenvolvimento das dimensões humanas na civilização ocidental. É nesse ensaio que podemos avaliar a fecundidade da aplicação da teoria dimensional aos processos sociais

O homem é apresentado por Sartre, em L’être et lê Néant, na sua conhecida formulação dialética: uma forma rígida ou fechada, len-soi, primeira dimensão do ser, que se nega a si mesma na especificidade humana, atingindo em le pour soi a segunda dimensão, da qual resulta necessariamente a terceira dimensão de l’être pour autrui, na relação social. Essa formulação se repete no capítulo sobre a terceira dimensão ontológica do corpo da seguinte maneira: antes de tudo, o corpo existe, e este existir é a sua primeira dimensão; depois, o corpo entra em relação com os outros, e nesta relação surge a sua segunda dimensão; por fim, no conhecimento do corpo pelos outros tem ele a sua terceira dimensão. (“J’existe pour moi comme connusion ontologique de mon corps”.)

Em Denis de Rougemont essa dialética das dimensões adquire maior densidade ontológica, passando do plano da fenomenologia para o da metafísica. Apresenta-se, porém, numa perspectiva fideísta. A transcendência do ser, que é a sua terceira dimensão, equivale a um duplo processo de relações: no plano social como amor do próximo, e no metafísico como amor de Deus. Essas dimensões se tornam mais claras numa enfocação histórico-cultural: a primeira dimensão é a do horizonte tribal, que o autor define servindo-se da teoria do corpo mágico ou corpo-sagrado do ensaísta austríaco Rudolf Kessner, e em que o homem primitivo aparece como simples parcela de um todo fechado sobre si mesmo; a segunda dimensão é a do horizonte civilizado em que surge o indivíduo urbano que se torna cidadão. A terceira dimensão é a do transcendente em que o homem se torna cristão, integrando-se nos princípios espirituais da civilização. Esse particularismo de Rougemont equivale, entretanto, ao conceito universal da transcendência pela cultura, que encontramos no horizonte profético de John Murphy em seus estudos sobre as Origens e a História das Religiões.

Vemos, assim, que as limitações daquilo que chamamos perspectiva fideísta, no ensaio de Rougemont, não diminuem a importância de sua tentativa de aplicação da teoria das dimensões humanas num plano mais fecundo que o da ontologia fenomenológica de Sartre. Vejamos de que maneira Rougemont esquematiza a sua teoria das dimensões do espírito ocidental, que se eleva à terceira dimensão pelo impacto de uma religião oriental. É curiosa essa aplicação sectária da teoria das dimensões, que servindo-se de elementos orientais, faz surgir no ocidente, no fenômeno da pessoa, o homem tridimensional, ao mesmo tempo que nega aos orientais essa possibilidade.

É o seguinte o esquema apresentado pelo próprio Denis de Rougemont: “Se o homem do clã, da tribo ou da casta, só tinha uma dimensão real: sua relação com o corpo sagrado; se a segunda dimensão, inventada pelos gregos, é a que reúne o indivíduo e seu modo de relações, a cidade; São Paulo definiu a terceira dimensão: a relação dialética com o transcendente, religando o indivíduo como vocação divina à comunidade, como amor do próximo. Esse homem, melhor liberado que o indivíduo grego, melhor entrosado que o cidadão romano, mais livre pela fé mesma que o entrosa, é o arquétipo do Ocidente que nasce, é a pessoa”.

Murphy, porém, ao tratar do horizonte-profético como uma conseqüência universal do desenvolvimento do horizonte civilizado, acentua o aparecimento “das condições novas que tornaram possível o advento de grandes individualidades, profetas, filósofos, instrutores éticos e religiosos, desde cerca de dois mil anos antes da nossa era”. Situando o período desse desenvolvimento entre o XI e o III séculos antes de Cristo, e limitando-o geograficamente à região compreendida entre a Grécia e o Egito, passando pela Palestina e a Mesopotâmia, até a índia e a China, demonstra historicamente o aparecimento da pessoa, equivalente à terceira dimensão de Rougemont, muito antes do advento do Cristianismo. Anulamos, assim, o exagero fideísta de Rougemont, como esse mesmo exagero anulou o negativismo existencial de Sartre, que limitava a terceira dimensão ao plano das relações sociais. E assim, por um processo dialético, temos a pureza conceptual da teoria das dimensões humanas, capazes de nos servir, sem qualquer limitação sectarista, para uma possível tentativa de elaboração metodológica, visando à mais ampla e mais profunda enfocação filosófica do problema da educação.

A validade da teoria dimensional do espírito parece-nos pelo menos bem sustentada nas formulações de Dilthey, Sartre e Rougemont. Claro que ela se funda, para o primeiro e o último, nos pressupostos da evolução histórica, e para o segundo, na problemática do ser. Temos assim, na sua base, a polaridade ontológica-social, com todas as implicações que vão de um pólo a outro. Convém lembrar, como demonstra Jean Vahl, que as raízes da teoria dimensional, por assim dizer, se aprofundam no passado filosófico. De qualquer maneira, o que nos interessa é a possibilidade de sua aplicação metodológica. Essa possibilidade parece fecunda principalmente por oferecer à Filosofia da Educação perspectivas filosóficas para a solução dos seus problemas até agora frustrados, em grande parte, pela falta dessas perspectivas.


Educação e Filosofia


A inquietação atual do pensamento pedagógico, à procura de uma Filosofia da Educação que realmente corresponda às exigências do mundo em transformação, resulta não só do fato mesmo dessa transformação, como também da falta de unidade, ou pelo menos de uma confluência de vistas a respeito dos problemas a serem postos em equação. Quando, em 1941, a National Society for the Study of Education, dos Estados Unidos, resolveu dedicar um dos seus anuários ao problema da Filosofia da Educação, essa falta de unidade fundamental se tornou bem patente. Na introdução que escreveu para o anuário, publicado em 1942, o Prof. John Brubacher, da Universidade de Yale, esclarece que o intuito da Natinal Society era conseguir que “as diversas filosofias se dirigissem de maneira clara e inequívoca, aos pontos importantes de seus desacordos”. Entretanto, os colaboradores convidados, representantes das várias escolas atuais de Filosofia, e particularmente de Filosofia da Educação, não puderam atender a esse apelo.

No decorrer destes últimos anos muitos esforços foram desenvolvidos no sentido da superação desse estado de coisas. Mas a superação não era fácil, pois os desacordos eram ainda mais profundos, como podemos ver neste trecho do prefácio de Brubacher: “Afortunada ou desgraçadamente, esse plano não foi adotado porque no Comitê da obra, não somente se pode chegar a um acordo com referência aos problemas que seriam selecionados, como nem mesmo foi possível uma coincidência a respeito do que constitui um problema na Filosofia da Educação. Em conseqüência decidiu-se permitir a cada colaborador a exposição do seu sistema de Filosofia da Educação na forma que lhe parecesse mais adequada”.

Mortimer Adler, que colaborou no anuário escrevendo uma defesa da Filosofia da Educação, pôs em relevo a necessidade de uma definição do seu objeto como solução dos desacordos existentes. Lamentou a posição individual e irredutível de vários filósofos que só tinham a expor “a sua opinião, o seu ponto de vista sobre educação, ou o seu sistema de filosofia”, e acentuou a urgência de se afastarem de cogitação os elementos que, não sendo filosóficos, sobrecarregam as escolas atuais de Filosofia da Educação. Dez anos depois, ao publicar o seu Traité de Pedagogie Generale, na França, René Hubert denunciava essa mesma situação e procurava lançar as bases realmente filosóficas de uma Filosofia da Educação.

O problema se torna claro nestas palavras de Paul Desjardins, que Hubert reproduz no prefácio da sua obra: “Os reformadores da educação, que temos observado, descobriram a verdade em quase todas as questões de detalhe: este, sobre a educação dos sentidos e sobre o processo do juízo na primeira infância; aquele, sobre a aplicação do trabalho manual; um, sobre a ginástica racional; outro, sobre a maneira de ensinar idiomas, ou a Física, ou o Desenho, ou a Música vocal, etc; descobrimentos contemporâneos e diversos, cujo centro, se refletimos a respeito, aparece como único; entretanto, este centro, de que tudo parte, não está assinalado com suficiente ênfase em nenhum lugar, e isso é o que falta determinar numa escola pensada à francesa”. Hubert comenta: “Porque este centro é o homem, e o mestre cuja memória acabamos de evocar teria sem dúvida acrescentado conosco que escola pensada à francesa é a que se dedica a ensinar e fazer nascer o Homem”.

É curioso que tenhamos encontrado, no próprio pensamento francês contemporâneo, as sugestões para uma resposta ao reclamo de Desjardins. A escola pensada à francesa, que põe a sua ênfase no objeto e centro da educação, o homem, só poderá aparecer, no campo vasto e contraditório da Filosofia da Educação, com base num esforço metodológico essencialmente humanista. A sugestão do esquema sartreano das dimensões do espírito parece-nos abrir amplas possibilidades nesse sentido. Da mesma maneira porque no estudo das religiões a aplicação do método dos horizontes culturais alargou a compreensão do problema, podemos esperar que um método dimensional permita o reajuste necessário do problema filosófico da educação.


Um método integral


Poderíamos aspirar a um método integral que, aplicado à história da Educação e a toda à problemática educacional, nos possibilitasse a investigação de todos os seus aspectos, ou que pelo menos nos desse, no plano da interpretação, uma visão geral e dinâmica do processo educativo? Os métodos históricos, comparativos e culturais não chegam a tanto. O método dos horizontes culturais oferece perspectiva mesológica em extensão, mas falta-lhe a profundidade ontológica que é procurada na complementação de pesquisas psicológicas. Entretanto a Psicologia é um particularismo, uma especialização, como a Sociologia. Suas pesquisas se referem a problemas particulares de estrutura e função, como as sociológicas aos problemas de relação. A Filosofia da Educação, porém, abrange todo o contexto de ações e reações objetivas e subjetivas que vai do ser como ser ao social e como cultura. A Filosofia da Educação extravasa, assim, da extensão de sua própria polaridade no momento em que transcende o social para penetrar no cultural, no pleno domínio do espírito. É o que estuda Hubert, com admirável clareza e segurança, no seu tratado.

É possível que estejamos exagerando as possibilidades do método dimensional e só os especialistas em metodologia poderão responder até onde as nossas esperanças são viáveis. O Prof. Cannabrava, que se destaca no estudo dos problemas metodológicos entre nós, procurou solucionar a diversidade dos conceitos de verdade empírica e verdade formal através do objetivismo-crítico, propondo o método único da síntese-reflexiva. “A Filosofia elaborou um método – declara – que permite conjugar a análise da estrutura lógica do conhecimento com a interpretação sintético-funcional dos processos empíricos que se relacionam diretamente com a atividade cognitiva”. A mesma unidade no tocante aos problemas gerais da Filosofia da Educação, em sua relação específica com o objeto do problema educacional, não poderá ser tentada?

Investigar as possibilidades metodológicas da teoria das dimensões humanas parece-nos, pois, tarefa das mais promissoras. Partindo da análise do corpo-mágico, da feliz formulação de Kessner, onde o homem se apresenta na sua primeira dimensão, um método dimensional nos levaria ao exame de todas as implicações da passagem para a segunda dimensão e desta para a terceira. Esse método global ou integral penetraria, assim, em todas as estruturas e conexões da polaridade pedagógica, abrangendo a simultaneidade do ser como ser – existindo em si, agindo no para-si e se transcendendo no cultural – do bio-pisiquismo em sua dinâmica funcional e do social em sua dinâmica de relações. Para essa penetração simultânea o método deveria dispor das técnicas específicas necessárias, subordinadas sempre ao contexto dimensional. Essa solução, se possível, livraria a Filosofia da Educação das contradições atuais, eliminando o atomismo das teorizações pessoais que tanto se apóiam em métodos filosóficos quanto em métodos científicos ou simples técnicas de pesquisa.

Esta busca da unidade pode parecer um desejo de volta, em termos psicanalíticos, à homogeneidade religiosa a que nos referimos no início. A educação, à maneira do Positivismo comteano, encontraria assim um meio de negar a sua natureza problemática para adormecer de novo no seio das certezas tradicionais. Mas o exemplo medieval a que já aludimos bastaria para mostrar-nos a irreversibilidade do processo evolutivo. Assim como na Idade Média o império religioso desenvolveu-se em plano racional e crítico, elaborando a autonomia mais completa do pensamento que eclodiria na Renascença, assim também a volta à unidade, no presente, não seria um simples retrocesso, mas um reajuste dialético. Poderíamos apelar para o princípio marxista da negação para explicar este aspecto do problema.

Não resta dúvida que a unidade metodológica é uma tentativa de superação de problemas, mas não de anulação da natureza problemática do processo educativo, o que seria impossível. Essa busca, como já vimos, existe na Filosofia Geral, como existia nas Ciências. Busca-se não apenas a unidade metodológica nesses dois campos, mas também a unidade conceptual, como vemos na obra de Einstein. E se o objetivo do conhecimento é a reconstrução do Universo pela síntese após a análise, essa busca não é a conseqüência de um complexo inconsciente, mas um imperativo do próprio desenvolvimento cultural.

No caso da educação, superar a situação conflitiva do presente para encontrar um plano de unidade equivalerá realmente a reconstruir a homogeneidade religiosa, porque o destino do homem, segundo Hubert, “consiste em ser espírito”, e o fim da educação, segundo Kerchensteiner, é “a criação de um ser espiritual”. Entretanto, não se trata da colocação do problema nos termos da antiga metafísica religiosa e sim nos da moderna ontologia. O espírito, nessa nova homogeneidade religiosa, é uma entidade cultural acessível às indagações do pensamento científico e filosófico. Murphy já o disse na introdução do seu estudo sobre as origens da religião, que citamos acima: “O homem é o produto da evolução, tanto no seu corpo quanto no seu espírito”. Assim, para usarmos uma expressão de Tagore, “a religião do homem” seria a nova homogeneidade em que a educação poderia reconstruir-se, não mais na base ingênua de certezas tradicionais, mas na base dinâmica da expansão do conhecimento em busca de novas dimensões do espírito.


Educação e religião


O problema do aparecimento e desenvolvimento da escola leiga, do laicismo pedagógico, tem sua fonte em três grandes equívocos que felizmente estão agora em fase de extinção. Vejamo-los:

1.º - O equívoco do Materialismo, que na verdade só apareceu de maneira clara, perfeitamente definida, na época moderna. Tudo quanto se considera como materialismo na Antiguidade só entra nessa classificação de maneira forçada. Foi o desenvolvimento das Ciências que permitiu uma fundamentação positiva para o Materialismo e conseqüentemente a sua formulação filosófica. Desde então surgiu o conflito Ciência versus Religião. Os homens cultos e os espíritos fortes opuseram-se ao ensino da Religião nas escolas por considerá-lo determinante de retrocessos culturais.

Nesse caso, o equívoco do Materialismo estava certo, porque o ensino religioso e o seu predomínio na Educação eram também um perigoso e lamentável equívoco, de vez que as religiões se equivocavam no tocante a pontos fundamentais do Conhecimento. O laicismo tinha por finalidade garantir uma educação liberta de superstições e preconceitos que as religiões semeavam e estimulavam no espírito dos educandos.

2.º - O equívoco do Espiritualismo, que partindo de premissas certas, na base das Revelações antigas, desenvolveu-se em várias formas de falsos silogismos, chegando a conclusões erradas na elaboração de suas teologias, teogonias e dogmáticas. Esse equívoco, traduzido violentamente no sectarismo das Igrejas foi à razão fundamental da luta entre Ciência e Religião. O sectarismo violento queria apossar-se de tudo, a começar pela criança, que desde os primeiros rudimentos de compreensão devia ser absorvida por ele. Daí o domínio da escola, de que até hoje não desistiu, porque através dela o sectarismo pretende moldar a mentalidade das gerações.

3.º - O equívoco da Filosofia, que através da Gnosiologia, da Teoria do Conhecimento, acabou referendando os dois equívocos acima, particularmente a partir do criticismo kantiano, que delimitou o campo do Conhecimento possível, relegando para o impossível – e portanto fora do alcance científico – os problemas espirituais. A separação entre Ciência e Religião foi então oficializada no plano cultural. Se o homem só podia conhecer através da Ciência pelo uso da Razão, não havia motivo algum que justificasse nas escolas a disciplina religiosa. A escola se tornava instrumento da Ciência. A Religião devia restringir-se ao âmbito familial e ser ministrada nas igrejas.

Temos nesse quadro, segundo me parece, o esquema geral do nascimento da Escola Leiga. Os homens de cultura tinham dois motivos bastante fortes para rejeitar a Religião na escola. De um lado, ela não podia oferecer dados positivos e, portanto verdadeiros sobre o que pretendia ensinar. De outro lado o seu ensino contrariava a Ciência, prejudicando a formação cultural dos alunos, e, além disso, criava e estimulava desentendimentos entre os homens, pelas pretensões exclusivistas do sectarismo. Longe de religar, ela na verdade desligava e gerava conflitos insensatos, sempre extremamente violentos porque baseados no fanatismo.


Situação atual


As campanhas pela escola laica abalaram o mundo e conseguiram vitórias parciais muito importantes. Apesar disso, o sectarismo religioso não desistiu e não desistirá jamais das suas pretensões, pois não há nada mais insistente do que o fanatismo, mormente quando aliado a interesses materiais. Não obstante, a situação atual no campo do conhecimento já traz em si mesma a solução para esse velho problema. Basta que os homens responsáveis encarem o assunto a sério e procurem resolvê-lo no interesse superior das coletividades, sem prejuízo para os sectarismos religiosos nem para os defensores da independência cultural.

Procuremos encarar a situação atual nos três campos acima especificados, vendo como seriam solucionados os impasses seculares a respeito:

1.º - O materialismo perdeu, com a rápida evolução dos conhecimentos científicos nestes últimos anos, os seus elementos de sustentação no campo da Razão. O próprio conceito de matéria, tanto no Materialismo mecanicista do passado quanto no Materialismo dialético de hoje, perdeu a sua substância. Além da descoberta de que a matéria é simples condensação de energia, temos agora o grande passo da física na descoberta da antimatéria. Numa verdadeira ação de pinça, as Ciências Físicas de um lado e as Ciências Psicológicas de outro, através das pesquisas nucleares e parapsicológicas, demonstraram positivamente a existência de outras dimensões do Universo e, portanto das coisas e dos seres. Já se pode falar cientificamente no Outro Mundo, sem qualquer implicação religiosa, em bases puramente científicas, pois se admite em face de provas de laboratório a existência do mundo da antimatéria. Na Parapsicologia a tese vitoriosa é a da existência do extrafísico no próprio homem, demonstrando a possibilidade científica da sobrevivência após a morte. E para coroar essa conquista do invisível os cientistas soviéticos acabaram de descobrir o corpo bioplástico do homem, um corpo de forma humana e de natureza energética, visível através da Câmara Kirlian de fotografia com adaptação de lentes óticas. Está rompida a barreira kantiana entre o conhecimento positivo e o chamado conhecimento sobrenatural. Não há sobrenatural: a Natureza continua em outras dimensões, que já estão sendo incorporadas ao conhecimento racional e sujeitas à pesquisa científica.

2.º - O Espiritualismo, até mesmo no seio das igrejas mais sólidas e tradicionais, modificou-se e continua a modificar-se profundamente, ameaçado nas suas fortalezas antiquadas pelo avanço dos conhecimentos. Há um acelerado processo de transformação nas Igrejas, que já atingiu a própria essência de várias delas obrigando-as a modificar não só a sistemática tradicional dos cultos, mas também a sua Teologia. O caso Theilhard de Chardin na Igreja Católica e o caso das Novas Teologias nas Igrejas da Reforma e suas constelações de satélites são suficientes para mostrar a profundidade da revolução havida e cujo processo continua a se desenrolar. É verdade que o sectarismo fanático e retrógrado procura reagir, mas é evidente que os seus estertores são tipicamente agônicos. O fanatismo obscurantista não tem mais nenhuma possibilidade de manter o seu domínio nos povos.

3.º - A Filosofia está francamente de volta às suas raízes espiritualistas, à sua verdadeira tradição, pois ela sempre foi um campo de cogitação sobre os problemas do espírito. Passado o surto de sarampo intelectual do Existencialismo ateu de Sartre, que punha a sua ênfase na existência e aniquilava o Ser, vemo-la de volta, ainda convalescentes, aos braços do misticismo alemão renascido em Heidegger, com a afirmação enfática do Ser como único objeto real da cogitação filosófica. Por outro lado, a Filosofia se impôs de novo como o elemento fundamental e aglutinador do Conhecimento, com sua plana capacidade de restabelecer a unidade do Saber, até agora dividido em regiões indevidamente antípodas.

Assim a situação atual se revela inteiramente favorável à solução do impasse educacional criado pelo fanatismo religioso. Científica e filosoficamente já se reconhece que a Religião é uma das províncias principais do conhecimento. As pesquisas antropológicas, sociológicas e etnológicas, apoiadas nos dados arqueológicos e na investigação psicológica e parapsicológica, demonstraram de sobejo que o homem não é apenas o animal político de Aristóteles, mas também e, sobretudo o ser religioso de Arnold Toynbee, cujas construções mais grandiosas têm sempre como esteio o seu substrato fideísta.

O ecumenismo católico, embora não tenha o poder que só o desprendimento, o desapego dos bens terrenos lhe poderia dar, nem por isso deixa de ser um sinal dos tempos, uma prova de que a conciliação das crenças se impõe ao mundo religioso como uma exigência da nova situação. Como acentuou Garaudy, passamos da era do anátema à era do diálogo. A Religião tenta superar o fanatismo e o pragmatismo sectário que a haviam desfigurado. Ventos novos estão soprando na atmosfera poluída do planeta e devemos esperar que a renovem, afastando e extinguindo os elementos de poluição.


Religião nas escolas


Ao lado de todos esses eventos auspiciosos devemos assinalar o desenvolvimento das pesquisas e dos estudos universitários sobre a Religião abrangendo todos os aspectos do problema. Há um conceito novo de fé, uma nova interpretação dos fatos religiosos. A contribuição espírita – que impregnou, consciente ou inconscientemente a obra de Chardin e dos renovadores da Teologia em geral, já faz sentir a sua ação benéfica por toda parte. O próprio Espiritismo começa a ser compreendido – e pelos próprios adeptos – não mais como uma nova seita destinada a substituir as anteriores, mas como aquela forma de síntese do Conhecimento de que nos falaram Kardec, Léon Denis e Sir Oliver Lodge, entre outros.

Tudo isso facilita a compreensão de que não podemos ter Educação sem Religião, de que o sonho da Educação Laica não passou de resposta aos grandes equívocos do passado a que acima me referi. O laicismo foi apenas um elemento histórico, inegavelmente necessário, mas que agora tem de ser substituído por um novo elemento. E qual seria essa novidade? Não, certamente, o restabelecimento das formas arcaicas e anacrônicas do ensino religioso sectário nas escolas. Isso seria um retrocesso e, portanto uma negação de todas as grandes conquistas que vimos na apreciação da situação atual.

Reconhecendo que a Religião corresponde a uma exigência natural da condição humana e a uma exigência da consciência humana, e que pertence de maneira irrevogável ao campo do Conhecimento, devemos reconduzi-la à escola, mas desprovida da roupagem imprópria do sectarismo. Temos de introduzir nos currículos escolares, em todos os graus de ensino, a disciplina Religião ao lado da Ciência e da Filosofia. Sua necessidade é inegável, pois sem atender aos reclamos do transcendente no homem não atingiremos aos objetivos da Paidéia grega: a educação completa do ser para o desenvolvimento integral e harmoniosa de todas as suas possibilidades.

Façamos agora justiça a Kant, que acima ficou um tanto prejudicado por sua posição agnóstica. Lembremos que, fiel aos rigores metodológicos da sua investigação, ele teve de separar o falso do real dentro das condições do saber do seu tempo. Nem por isso, entretanto, deixou de reconhecer a legitimidade dos impulsos afetivos do homem, e na Crítica do Juízo abriu perspectivas para a compreensão que hoje atingimos. Nele encontramos a idéia de Deus reconhecida como o supremo conceito que é dado à criatura humana formular, pois que essa idéia suprema representa uma síntese do Todo. E nele encontramos também a definição de Educação como desenvolvimento no homem de toda a sua perfectibilidade possível.

O próprio Kant, portanto, que respondeu pelo divisionismo do campo do Conhecimento, pode agora responder pela sua reunificação. E é realmente o que acontece, no momento, graças à corrente neokantiana da Filosofia contemporânea, onde deparamos com a Pedagogia renovadora de Kerchensteiner e Rena Hubert aquele na Alemanha e este na França, pregando uma Educação que tem por fundamento a Filosofia do Espírito. Nessa forma nova de Educação a Religião comparece, não como um ensino dogmático e sectário, mas como uma resposta às exigências conscienciais do homem, esclarecendo-lhe os problemas da existência de Deus, da natureza espiritual das criaturas e da sua destinação transcendente. Não é o padre, nem o pastor, nem o rabi, nem a catequista que vão dirigir a cadeira, mas o professor especializado no assunto, tratando dos problemas religiosos como se trata dos filosóficos e dos científicos.

De posse dos dados fornecidos pela disciplina escolar o educando decidirá por si mesmo, de acordo com a sua vocação, as suas tendências e preferências, o setor religioso em que se localizará, se for o caso. Mas poderá também se apoiar nesses dados para o desenvolvimento da sua própria religião, da sua posição pessoal – pois como demonstrou Bergson, comprovando Pestalozzi, existe a religião dinâmica individual que não se cristaliza em estruturas sociais.

Alegarão certamente os sectários que essa forma de ensino religioso livre e optativo (compreenda-se bem: optativo no sentido de facultar ao educando escolher ou não uma religião, mas obrigatório nos currículos escolares) equivale ao laicismo vigente. Porque o sectário só entende por religião válida a que ele professa. Aconteceria o mesmo no campo da Filosofia se um professor fanático entendesse que só a escola filosófica de sua preferência devesse ser ensinada. Mas os espíritos arejados, abertos compreenderão a importância do ensino religioso como disciplina universitária nos cursos superiores e como matéria didática de informação geral no primário e no secundário.

Os programas incluirão, nesse caso, os dados objetivos da Origem e História das Religiões, da Filosofia da Religião, da Sociologia e da Psicologia da Religião, dentro do objetivo de formação cultural do aluno. Claro que no curso primário o programa seria adequado, tratando da existência de Deus, de seu poder criador e mantenedor do Universo, do sentimento religioso que a sua existência desperta nas criaturas, das relações entre Deus e o homem, da função das religiões na vida humana, da importância dos valores religiosos para a formação da personalidade e assim por diante. No secundário já se poderia, além do necessário desenvolvimento maior desses temas, incluir elementos de História das Religiões, das provas da sobrevivência do homem após a morte, das relações entre o mundo visível e o mundo invisível, da função pragmática das religiões e assim por diante.

Dessa maneira a Educação não seria parcial, voltada apenas para os problemas imediatos da vida, mas forneceria elementos racionais para a formação espiritual do educando. E por isso mesmo não seria também religiosa no sentido estreito e superado do sectarismo ainda hoje dominante. Essa providencia me parece urgente, pois estamos, como já vimos, às portas de uma civilização espiritualista e não podemos continuar educando as crianças e os jovens nos moldes obsoletos do passado. Educação sem religião é atualmente absurda, como absurda é também a educação materialista que continuamos a aplicar.

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