François
Fénelon, pseudônimo de François de Salignac de La Mothe-Fénelon, foi um
teólogo, poeta e escritor francês bastante influente na França e cujas
ideias liberais muito contribuíram para a emancipação da humanidade.
Nasceu no castelo da família, em Périgord, em 6 de agosto de 1651 e morreu em Cambrai a 7 de janeiro de 1715, aos sessenta e três anos de idade.
Extraímos um pequeno trecho de um de seus livros e o traduzimos do francês, como singela homenagem a esse nobre Espírito, pela data do seu nascimento. Ei-lo aqui reproduzido:
TRATADO DA EXISTÊNCIA E DOS ATRIBUTOS DE DEUS
Por François Fénelon, escrito em 1712
Provas da existência de Deus, tiradas da consideração das principais maravilhas da natureza.
(...)
Após essas comparações, sobre as quais peço ao leitor para simplesmente
consultar-se a si próprio, mesmo sem raciocinar, creio que é momento de
entrar no detalhe da natureza. Não pretendo penetrá-la toda inteira;
quem o poderia? Também não pretendo entrar em nenhuma discussão de
Física; essas discussões suporiam certos conhecimentos aprofundados que
muitas pessoas de espírito jamais adquiriram; quero lhes propor apenas
um simples golpe de vista sobre a face da natureza; não quero lhes falar
senão do que todo mundo sabe, e que precisa apenas de um pouco de
atenção tranquila e séria.
Detenhamo-nos
primeiramente no grande objeto que atrai nossos primeiros olhares, isto
é, a estrutura geral do Universo. Lancemos um olhar sobre esta terra
que nos suporta; observemos no céu essa abóbada imensa que nos cobre;
esses abismos de ar e de água que nos rodeiam, e os astros que nos
iluminam. Um homem que vive sem reflexão pensa apenas nos espaços que
estão junto de si ou que têm alguma relação com suas necessidades; ele
considera a terra inteira apenas como o chão do seu quarto, e vê o sol
que o ilumina durante o dia da mesma maneira que vê a vela que o ilumina
durante a noite; seus pensamentos se limitam ao lugar estreito que ele
habita. Ao contrário, o homem habituado a refletir estende seu olhar
para mais longe, e considera com curiosidade os abismos quase infinitos
que o rodeiam por todos os lados. Um vasto reino lhe parece então um
pequeno canto da Terra; a própria Terra não é, a seus olhos, senão um
ponto da massa do Universo; admira-se de estar aí localizado sem saber
como nela veio parar.
Quem
é que suspendeu esse globo da terra que é imóvel? Quem é que nela pôs
os fundamentos? Nada, ao que lhe parece, é mais vil que ela; os mais
infelizes lhe calcam sob os pés. No entanto, é para possui-la que se
investem todos os grandes tesouros. Se a terra fosse mais dura, o homem
não poderia abrir-lhe o seio para cultivá-la; se ela fosse menos dura,
não poderia suportá-lo; ele afundaria em toda parte, como afunda na
areia ou no lamaçal. É do seio inesgotável da terra que sai tudo o que
há de mais precioso. Essa massa informe, vil e grosseira, toma as formas
mais diversas e se transforma, passo a passo, em todos os bens que lhe
solicitamos; essa lama tão feia transforma-se em mil objetos belos que
encantam os olhos; em apenas um ano ela se torna galhos, botões, folhas,
flores, frutos e sementes, para renovar suas liberalidades em favor dos
homens. Nada a esgota. Quanto mais dilaceramos suas entranhas, mas
liberal ela é. Após tantos séculos, durante os quais tudo tem dela
saído, ainda não está gasta; não se torna velha; suas entranhas ainda
estão plenas dos mesmos tesouros.
Mil
gerações passaram por seu seio: tudo envelhece, exceto ela, que
rejuvenesce a cada ano, na primavera. Ela jamais falta aos homens; mas,
insensatos, os homens faltam a si mesmos negligenciando o seu cultivo
(...).
Admirai
as plantas que nascem da terra; elas fornecem alimentos aos sãos e
remédios aos doentes. Suas espécies e suas virtudes são inumeráveis:
elas enfeitam a terra; dão verdor, flores odoríferas e frutos
deliciosos. Vedes essas vastas florestas que parecem tão antigas quanto o
mundo? As árvores se afundam na terra por meio de suas raízes, como se
elevam para o céu por meio de seus galhos; suas raízes as sustentam
contra os ventos, e vão buscar, como por pequenos tubos subterrâneos,
todos os sucos destinados à nutrição de seu caule; o próprio caule se
reveste de uma casca dura, que coloca a madeira tenra ao abrigo das
injúrias do ar; seus galhos distribuem, por diversos canais a seiva que
as raízes reuniram no tronco. No verão esses ramos nos protegem contra
os raios do sol, com sua sombra; no inverno eles nutrem a chama que
conserva em nós o calor natural. Sua madeira não é útil somente para o
fogo; é uma matéria dócil, ainda que sólida e durável, à qual, sem
dificuldade, a mão do homem dá todas as formas que desejar, para as
grandes obras de arquitetura e de navegação. Além disso, pendendo seus
ramos para a terra, as árvores frutíferas parecem oferecer seus frutos
ao homem.
As
árvores e as plantas, deixando cair seus frutos ou seus grãos, preparam
em torno delas mesmas uma numerosa prosperidade. A mais frágil planta, o
menor legume, contêm em pequeno volume, num grão, o germe de tudo o que
se desdobra nas mais altas plantas e nas maiores árvores. A terra, que
jamais muda, faz todas essas mudanças em seu seio.
Observemos
agora o que chamamos de água: é um corpo líquido, claro e transparente.
Por um lado, ela corre, escapa, foge; por outro, toma todas as formas
do corpo que a contêm, não tendo nenhuma para si mesma. Se a água fosse
um pouco mais rarefeita, se tornaria uma espécie de ar; toda a face da
terra seria seca e estéril; haveria apenas animais voadores; nenhuma
espécie de animal poderia nadar, nenhum peixe poderia viver; não haveria
nenhum comércio pela navegação. Que mão habilidosa soube condensar a
água, sutilizar o ar, e distinguir tão bem essas duas espécies de corpos
fluidos?
Se
a água fosse um pouco mais rarefeita, não poderia sustentar esses
prodigiosos edifícios que denominamos navio; os corpos menos pesados
afundariam primeiro na água. Quem é que tomou o cuidado de escolher uma
tão justa configuração de partes, e um grau tão preciso de movimento,
para tornar a água tão fluida, tão insinuante, tão própria a escapar,
tão incapaz de toda consistência, e no entanto tão forte para levar, e
tão impetuosa para arrastar as mais pesadas massas? Ela é dócil; o homem
a conduz, como um cavaleiro conduz um cavalo pelas pontas das rédeas;
ele a distribui como lhe convém; eleva-a sobre as montanhas escarpadas, e
se serve de seu próprio peso para fazê-la cair, e subir tanto quanto
desceu. Mas o homem, que conduz as águas com tanto império é, a seu
turno, conduzido por elas. A água é uma das maiores forças motrizes que o
homem sabe empregar para suprir ao que lhe falta nas artes mais
necessárias, por causa da sua pequenez e pela fragilidade de seu corpo.
Todavia,
essas águas que, não obstante sua fluidez, são massas tão pesadas, não
deixam de se elevar acima de nossas cabeças e ficar lá por longo tempo
suspensas. Vede essas nuvens que voam como sobre as asas
dos ventos? Se caíssem de repente em grossas colunas d’água, rápidas
como torrentes, submergiriam e destruiriam tudo o que estivesse em seu
caminho, e o restante das terras ficariam áridas. Que mão as têm nesses
reservatórios suspensos, e não lhes permite cair senão gota a gota, como
se fossem destiladas por um regador? Donde vem que em certos países
quentes, onde quase nunca chove, o orvalho é tão abundante que supre a
falta de chuva, e em outros países, tais como nas margens do Nilo e do
Ganges, a inundação regular dos rios em certas estações diminui a
necessidade dos povos de irrigar a terra? Pode-se imaginar medidas
melhor tomadas para tornar todas as regiões férteis?
Assim,
a água dessedenta não somente os homens, mas também os campos áridos; e
aquele que nos deu esse corpo fluido o distribuiu com cuidado sobre a
terra como os canais de um jardim. (...)