FALANDO A
PIRATININGA
Humberto de Campos
18 de agosto de 1935
Tive ensejo de afirmar aí
no mundo que, se algum dia conseguisse liquidar todo o meu débito para com a
terra maranhense e o Senhor decidisse mergulhar meu espírito no Letes da
carne, eu desejaria ser paulista ou baiano.
São Paulo e Bahia foram
os dois braços fortes que me ampararam na provação. Minha dívida para com
ambos é sagrada e irresgatável. Era do seio afetuoso da Bahia, terra mãe do
Brasil, que me chegavam os brados de incitamento para a luta; e dos celeiros
fartos e generosos de São Paulo vinha a maior parte do meu pão.
Em seu território vivem
os meus melhores amigos e do santuário do seu afeto subiram para Deus, em
favor do escritor humilde e enfermo, as preces mais comovedoras e mais
sinceras, as quais não lhe iluminaram apenas as estradas pedregosas da Vida,
mas constituíram igualmente uma lâmpada suave no seu caminho da Morte.
Ignoro quando o Senhor
resolverá o retorno do meu espírito aos tormentos da Terra, mas quero, antes
de meditar nos calabouços da carne, falar do reconhecimento do meu coração.
Todas as coisas do Brasil
falam particularmente à nossa alma: Piratininga é, porém, o poema de ouro e
de aço das energias do seu povo. Sua história, dentro da história da
Pátria, é uma afirmação gloriosa de heroísmo sagrado. O mesmo espírito de
liberdade e de autonomia, que nos primórdios de sua organização lhe motivou
o desejo de aureolar a fronte de Amador Bueno com uma coroa de rei,
emancipando-se da sua condição subalterna, trabalha hoje, como trabalhou no
passado, para eternizar com o braço realizador a epopéia da sua grandeza.
Entre as energias moças
da terra há um delírio contagioso de ação e de trabalho. O esforço
carinhoso do homem une-se à exuberância da seiva e São Paulo - desfralda,
nas linhas vanguardeiras, o lábaro do seu progresso e das suas conquistas.
Do conforto de suas cidades modernas eleva-se para o céu a oração do labor
que Deus escuta, premiando-lhe a operosidade com as alegrias da fartura.
E dizem que Anchieta,
ainda hoje, em companhia daqueles que lançaram a primeira pedra na base do
glorioso edifício piratiningano, passeia, entre as bênçãos dos seus
cafezais e das suas estradas, enviando sagrada exortação aos que pelejam.
Ele, que soube aliar, no mundo, a energia do homem às virtudes do apóstolo
vê do espaço infinito, a sublimidade da sua obra, e quando se aproxima das
praias antigamente desertas e dos lugares onde as florestas desapareceram,
sob os milagres do progresso, as juritis morenas da terra fremem as asas de
arminho, tecendo um pálio inesperado para cobrir a fronte do homem
prodigioso que lhes levou a palavra do Evangelho.
Abençoam-no das alturas
os indígenas redimidos pela sua fraterna solicitude, e, sob a proteção
afetuosa das aves, Anchieta sorri, contemplando a sua Piratininga que
trabalha e floresce.
Sempre me referi às
coisas de São Paulo com o carinhoso enternecimento da minha admiração.
E agora, longe das
perturbações a que nos submete a carne, infligindo-nos a mais amargosa das
escravidões, posso apreciar melhormente as suas afirmações de grandeza.
Tenho a visão nítida dos seus valorosos feitos, da enérgica projeção dos
ideais da sua gente intrépida, cuja atividade se desdobra no ambiente da
confraternização de todas as raças, fundindo-se no seu seio os mais
enobrecedores sentimentos da fraternidade humana.
São Paulo de hoje é a
bússola dos que hão de estudar amanhã a etnologia brasileira.
Ao lado dos seus
numerosos institutos de civilização e cultura, Piratininga terá a sua
"Sociedade de Estudos Psíquicos" como realidade nova do ideal
espiritualista, que, arregimentando as fileiras dos estudiosos, se prepara a
fim de constituir a luz da humanidade futura.
Abre-se, desse modo, no
cenário da sua evolução, mais um centro de beneméritos, cuja ação não
estará circunscrita à pesquisa científica, mas também ao levantamento do
nível moral da sociedade, intensificando os elos da fraternidade cristã;
por que os verdadeiros estudiosos sabem que, se a ciência contemporânea
não está falida, não pode, nas suas condições do momento, oferecer ao homem
a chave das felicidades imortais.
A Humanidade está faminta
desse amor que só Deus pode outorgar.
Um frio terrível de
desespero e desgraça sopra entre os homens, que se esqueceram da meditação e
da prece. E a Ciência é a figura do Édipo eletrizado sob os fatalismos
inelutáveis do destino. O erro dos que investigam é buscar a sabedoria sem
preparar o coração, invertendo as determinações imperiosas da Vida.
Piratininga está, pois,
preparando o coração de seus filhos, e das suas arcas ricas e generosas se
derramará muito pão espiritual para os celeiros empobrecidos.
Dos empórios da sua
grandeza saíram no passado as bandeiras civilizadoras, rasgando o coração
das selvas compactas e, na atualidade, novas bandeiras sairão, rompendo o
cipoal da descrença em que os homens se emaranharam, para dizer a palavra
da verdade e do amor. As suas armas de agora serão os ensinos do Evangelho,
e o seu objetivo, a descoberta do filão do ouro espiritual.
Um júbilo inexprimível
entorna-se do meu coração, dirigindo aos paulistas a minha palavra
inexpressiva da tribuna da Morte; e tomado de orgulhosa alegria, posso
hoje exclamar:
- "Eu te agradeço, ó
Senhor! tão preciosos favores, porque, graças à tua bondade, pude hoje
falar com S. Paulo, no momento em que se entregava com valoroso desassombro
à obra da imortalidade, que é a obra do Evangelho. . ."
Do livro Crônico de Além Túmulo. Psicografia
de Francisco Cândido Xavier.