Deolindo amorim
Artigo publicado na Revista Internacional de Espiritismo - Janeiro de 1956- Número 12
Faz
pouco tempo, estávamos discorrendo, aliás, perfunctoriamente, sobre o
problema do livre-arbítrio e do determinismo, durante uma palestra
espírita, e lá estava um moço (estudante de Medicina), que, não sendo
espírita, aparecera no Centro, apenas para acompanhar um amigo seu.
Terminada a palestra, fomos informados, à saída, de que o estudante de
Medicina, fazendo críticas aos nossos comentários, dissera o seguinte:
Ora tudo isso está explicado pela endocrinologia; são as glândulas
endócrinas que determinam o caráter e o comportamento do homem.
Queria ele dizer, pelo que nos informaram, que a evolução do espírito
não tem influência alguma no caráter e nas atitudes: tudo depende das
glândulas de secreção interna.
Toda generalização é perigosa. A endocrinologia explica muita coisa,
não há dúvida, mas é preciso notar que o caráter do homem não depende
exclusivamente do estado das glândulas.
É justamente aqui, neste ponto, que o campo da especialização médica,
por exemplo, embora restrito e privativo, não pode deixar de permitir a
penetração de certos princípios filosóficos.
Não é mais possível, hoje em dia, colocar no vestíbulo da cultura
especializada uma legenda ou advertência proibitória, semelhante àquela
que o filósofo antigo colocou à porta de seu retiro: Aqui não entra quem
não souber Geometria!
Não há, presentemente, um ramo da cultura que possa ficar, como se diz,
hermeticamente fechado à incidência de solicitações e discussões mais
amplas, fora do círculo restrito dos iniciados. Já dissemos isto mesmo,
sobre a obra de Fernando Ortiz – La Filosofia Penal de los Espiritistas,
precisamente porque o criminalista cubano, sem ser espírita, sai do
campo limitado de uma especialidade e vai procurar, na filosofia do
Espiritismo, a solução para muitos problemas de Direito Penal. (1)
É natural que um estudante de Medicina, principalmente quando
desconhece inteiramente a Doutrina Espírita, veja o problema do caráter
pelo prisma exclusivo do funcionamento de certas glândulas. Se fosse
realmente assim, nada mais fácil do que classificar os tipos humanos de
acordo com o seu sistema endócrino.
A Doutrina Espírita não desconhece a influência das glândulas
endócrinas no comportamento do homem, mas o que a Doutrina afirma, ao
mesmo tempo, é que essa influência não destrói a tese filosófica do
livre-arbítrio.
Vejamos o que diz a Doutrina Espírita sobre este problema, que é, hoje, mais atual do que nunca:
“O exercício das faculdades do espírito depende dos órgãos que lhe
servem de instrumento. Aquelas (as faculdades) são enfraquecidas pela
grosseria da matéria”. (“Livro dos Espíritos”, questão n.º 367)
Afirma-se aí, inegavelmente, em tese geral, a influência do organismo
sobre a matéria ou, para usar linguagem técnica, a influência do soma
sobre o psíquico. Se o organismo, pela grosseria da matéria, pode
enfraquecer as faculdades do espírito, dificultando-lhe, portanto, a
percepção, é claro que a vontade sofre restrições inevitáveis. Isto quer
dizer, portanto, que o espírito, quando encarnado, não goza da
plenitude de sua vontade. Tese cediça na Doutrina Espírita. Acontece,
porém, que a Doutrina, ainda no mesmo capítulo, esclarece que: não são
os órgãos que dão as faculdades, mas estas que promovem o
desenvolvimento dos órgãos.
Já se vê que é pela ação do espírito, pela vontade, finalmente, que os
órgãos materiais se desenvolvem; não fosse a vontade, ficariam
atrofiados. Logo, a influência do organismo sobre a alma não é absoluta,
não chega ao extremo de anular completamente o livre-arbítrio. Não
devemos perder de vista o esclarecimento pessoal de Allan Kardec, logo
ao pé da resposta que lhe dera o espírito instrutor:
“Se as faculdades tivessem seu principio nos órgãos, o homem seria uma
máquina, sem livre-arbítrio e sem a responsabilidade de seus atos. Fora
necessário admitir que os maiores gênios, os sábios, os poetas, os
artistas o são apenas porque o acaso lhes deu órgãos especiais, de onde
se segue que sem tais órgãos eles não teriam sido gênios e que o mais
imbecil poderia ter sido um Newton, um Virgilio ou um Rafael, desde que
tivesse sido provido de certos órgãos”.
O órgão é o instrumento de que se serve o espírito para manifestar as
suas tendências e aptidões. É claro que o espírito necessita de órgãos
indispensáveis ao exercício de funções humanas, mas, daí, não se pode
concluir que, pelo fato de possuir tais e quais órgãos, um espírito
venha a ser, somente por isso, um gênio, um iluminado, ainda que não
tenha o necessário refinamento.
A influência da matéria sobre a alma cria dificuldade à percepção,
porque restringe muito o campo de projeção, uma vez que o ritmo
vibratório sofre limitações inevitáveis. Entretanto – e é neste ponto
que o Espiritismo se afasta do radicalismo determinista de certas
correntes e escolas – a evolução do espírito modifica, de modo
gradativo, a ação da matéria.
Se, realmente, a deficiência de um órgão ou qualquer distúrbio
endócrino pode alterar o comportamento de um indivíduo,
sacrificando-lhe, em grande parte, o livre-arbítrio, também é verdade
que, em determinados indivíduos, tais anomalias são superadas pelo
desenvolvimento espiritual.
Logo, a evolução do espírito pode levar o indivíduo a se sobrepor a
tudo quanto lhe causa dificuldade à manifestação da vontade. Não é regra
geral, mas disto decorre um principio importante: quanto mais adiantado
é o espírito, mais facilidade tem ele para superar todas as restrições a
seu livre-arbítrio, sejam restrições físicas (doenças, defeitos, etc.),
sejam restrições sociais.
Há indivíduos que, mesmo quando portadores de certas moléstias graves
ou quando têm defeitos aberrantes, procuram evitar a formação de
complexos, criam derivativos e chegam até à sublimação, e não se deixam
vencer. Isto é prova de evolução espiritual. O livre-arbítrio não é, aí,
absolutamente tolhido, como parece.
Foi este o ponto que o moço estudante quis refutar, quando fazíamos a
nossa palestra sobre o livre-arbítrio e determinismo, tema velho e já
muito surrado. Entendia o moço, dentro de uma concepção fundada sobre
uma espécie de supremacia das glândulas endócrinas, que o homem não
procede, não pode agir como quer, uma vez que está na dependência do
estado de suas glândulas, principalmente a tiróide.
Se assim é, podemos concluir que todo o mecanismo dos atos humanos,
toda a expressão do caráter, depende exclusivamente das glândulas.
Neste caso, a endocrinologia, que é apenas um campo de especialização,
teria uma extensão incalculável, tal como a Filosofia, na Grécia antiga.
A endocrinologia, se lhe quiséssemos dar tanta amplitude, terminaria
invadindo a própria seara da Filosofia, porque, assim, passaria a
explicar tudo quanto se refere à vontade e às ações do homem no composto
matéria-espírito.
No caso de admitirmos que a solução de todos os problemas do
comportamento e até das atitudes íntimas da criatura humana esteja
exclusivamente na endocrinologia, teremos de chegar à conclusão
inevitável de que a reforma do homem é um problema clinico, é questão de
tratamento das glândulas, não é um problema moral...
Como decorrência disto, poderemos dizer que a Doutrina Espírita nada
mais tem que fazer, nem é necessário tentar corrigir o homem e a
sociedade, por meio da doutrinação, pelo esclarecimento evangélico,
porque é nas glândulas endócrinas que está a solução do problema. Isto é
o que se pode chamar posição extremada.
Nem mesmo a criminologia, que já teve época em que se agarrou muito ao
chamado “arbítrio das glândulas”, poderia esposar, hoje em dia, todas as
afirmativas desta corrente cientifica. Há, na personalidade humana,
elementos oriundos de existências anteriores.
Já dissemos aqui, como o fizemos por ocasião de nossa palestra, que o
Espiritismo reconhece a influência do organismo sobre as faculdades e as
ações da alma unida ao corpo. Não vai, porém, ao exagero de generalizar
a explicação de fenômenos e atos cuja causa não pode, de forma alguma,
ser encontrada no sistema endócrino.
A Doutrina Espírita é ainda mais objetiva quando diz que uma aberração
física pode tolher a liberdade (Livro dos Espíritos, questão n.º 847).
Isto, porém, não constitui nem pode constituir argumento para se negar à
tese de que, pela evolução, o espírito encarnado pode superar
deficiências orgânicas, e, assim, usar o seu livre-arbítrio. Uma
aberração não destrói um principio. Ainda assim, dentro de outro
principio da filosofia espírita – o de que o espírito, ao voltar à
Terra, pela reencarnação, vai ter um corpo adequado às condições de vida
em que terá de cumprir as suas provas ou desempenhar sua missão – ainda
assim, repetimos, não fica anulado o livre-arbítrio, porque o espírito
escolhe a prova antes de se realizar a reencarnação. Veja-se o Livro dos
Espíritos, questão n.º 258, em cujo texto se lê o seguinte:
“Ele próprio (espírito) escolhe o gênero de provas que quer sofrer, e é nisto que consiste o livre-arbítrio”.
Por detrás de uma anomalia física, por detrás de uma aberração
horrenda, ainda que o espírito encarnado seja tolhido na manifestação de
sua vontade, nesta existência, se esconde um principio filosófico e se
revela, até nisto, a existência do livre-arbítrio, porque o espírito
pode amenizar os efeitos da prova.
É claro que, se ficarmos no campo restrito da endocrinologia, sem
subirmos à esfera filosófica do problema, não poderemos compreender a
incógnita...
Seja como for, a influência das glândulas no comportamento do homem,
por força da ação do corpo sobre a alma, é tese pacífica, e pretender
contrariá-la inteiramente é assumir posição anticientifica ou
desconhecer o sentido progressivo do Espiritismo, em relação com o
desenvolvimento da cultura humana.
Todavia, o que o Espiritismo repele, e repele em termos lógicos, com
base na experiência, é a tese absoluta de que o homem não tem vontade,
não é senhor de suas ações, é um irresponsável, porque todas as suas
atitudes são determinadas pelas glândulas.
(1) A obra de Ortiz foi traduzida por Carlos Imbassahy e publicada pela Livraria Allan Kardec Editora (LAKE), de S. Paulo.