Caros amigos leitores , gostaríamos, na medida do possível ,contar com a interação de todos ,através de comentários , tornando se seguidores deste blog divulgando para seus conhecidos ,para que assim possamos estudar e aprendermos juntos , solidários e fraternos. Inscrevam-se no blog!

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Restrições ao Livre-Arbítrio

Deolindo amorim

Artigo publicado na Revista Internacional de Espiritismo - Janeiro de 1956- Número 12

Faz pouco tempo, estávamos discorrendo, aliás, perfunctoriamente, sobre o problema do livre-arbítrio e do determinismo, durante uma palestra espírita, e lá estava um moço (estudante de Medicina), que, não sendo espírita, aparecera no Centro, apenas para acompanhar um amigo seu.
Terminada a palestra, fomos informados, à saída, de que o estudante de Medicina, fazendo críticas aos nossos comentários, dissera o seguinte: Ora tudo isso está explicado pela endocrinologia; são as glândulas endócrinas que determinam o caráter e o comportamento do homem.
Queria ele dizer, pelo que nos informaram, que a evolução do espírito não tem influência alguma no caráter e nas atitudes: tudo depende das glândulas de secreção interna.
Toda generalização é perigosa. A endocrinologia explica muita coisa, não há dúvida, mas é preciso notar que o caráter do homem não depende exclusivamente do estado das glândulas.
É justamente aqui, neste ponto, que o campo da especialização médica, por exemplo, embora restrito e privativo, não pode deixar de permitir a penetração de certos princípios filosóficos.
Não é mais possível, hoje em dia, colocar no vestíbulo da cultura especializada uma legenda ou advertência proibitória, semelhante àquela que o filósofo antigo colocou à porta de seu retiro: Aqui não entra quem não souber Geometria!
Não há, presentemente, um ramo da cultura que possa ficar, como se diz, hermeticamente fechado à incidência de solicitações e discussões mais amplas, fora do círculo restrito dos iniciados. Já dissemos isto mesmo, sobre a obra de Fernando Ortiz – La Filosofia Penal de los Espiritistas, precisamente porque o criminalista cubano, sem ser espírita, sai do campo limitado de uma especialidade e vai procurar, na filosofia do Espiritismo, a solução para muitos problemas de Direito Penal. (1)
É natural que um estudante de Medicina, principalmente quando desconhece inteiramente a Doutrina Espírita, veja o problema do caráter pelo prisma exclusivo do funcionamento de certas glândulas. Se fosse realmente assim, nada mais fácil do que classificar os tipos humanos de acordo com o seu sistema endócrino.
A Doutrina Espírita não desconhece a influência das glândulas endócrinas no comportamento do homem, mas o que a Doutrina afirma, ao mesmo tempo, é que essa influência não destrói a tese filosófica do livre-arbítrio.
Vejamos o que diz a Doutrina Espírita sobre este problema, que é, hoje, mais atual do que nunca:
“O exercício das faculdades do espírito depende dos órgãos que lhe servem de instrumento. Aquelas (as faculdades) são enfraquecidas pela grosseria da matéria”. (“Livro dos Espíritos”, questão n.º 367)
Afirma-se aí, inegavelmente, em tese geral, a influência do organismo sobre a matéria ou, para usar linguagem técnica, a influência do soma sobre o psíquico. Se o organismo, pela grosseria da matéria, pode enfraquecer as faculdades do espírito, dificultando-lhe, portanto, a percepção, é claro que a vontade sofre restrições inevitáveis. Isto quer dizer, portanto, que o espírito, quando encarnado, não goza da plenitude de sua vontade. Tese cediça na Doutrina Espírita. Acontece, porém, que a Doutrina, ainda no mesmo capítulo, esclarece que: não são os órgãos que dão as faculdades, mas estas que promovem o desenvolvimento dos órgãos.
Já se vê que é pela ação do espírito, pela vontade, finalmente, que os órgãos materiais se desenvolvem; não fosse a vontade, ficariam atrofiados. Logo, a influência do organismo sobre a alma não é absoluta, não chega ao extremo de anular completamente o livre-arbítrio. Não devemos perder de vista o esclarecimento pessoal de Allan Kardec, logo ao pé da resposta que lhe dera o espírito instrutor:
“Se as faculdades tivessem seu principio nos órgãos, o homem seria uma máquina, sem livre-arbítrio e sem a responsabilidade de seus atos. Fora necessário admitir que os maiores gênios, os sábios, os poetas, os artistas o são apenas porque o acaso lhes deu órgãos especiais, de onde se segue que sem tais órgãos eles não teriam sido gênios e que o mais imbecil poderia ter sido um Newton, um Virgilio ou um Rafael, desde que tivesse sido provido de certos órgãos”.
O órgão é o instrumento de que se serve o espírito para manifestar as suas tendências e aptidões. É claro que o espírito necessita de órgãos indispensáveis ao exercício de funções humanas, mas, daí, não se pode concluir que, pelo fato de possuir tais e quais órgãos, um espírito venha a ser, somente por isso, um gênio, um iluminado, ainda que não tenha o necessário refinamento.
A influência da matéria sobre a alma cria dificuldade à percepção, porque restringe muito o campo de projeção, uma vez que o ritmo vibratório sofre limitações inevitáveis. Entretanto – e é neste ponto que o Espiritismo se afasta do radicalismo determinista de certas correntes e escolas – a evolução do espírito modifica, de modo gradativo, a ação da matéria.
Se, realmente, a deficiência de um órgão ou qualquer distúrbio endócrino pode alterar o comportamento de um indivíduo, sacrificando-lhe, em grande parte, o livre-arbítrio, também é verdade que, em determinados indivíduos, tais anomalias são superadas pelo desenvolvimento espiritual.
Logo, a evolução do espírito pode levar o indivíduo a se sobrepor a tudo quanto lhe causa dificuldade à manifestação da vontade. Não é regra geral, mas disto decorre um principio importante: quanto mais adiantado é o espírito, mais facilidade tem ele para superar todas as restrições a seu livre-arbítrio, sejam restrições físicas (doenças, defeitos, etc.), sejam restrições sociais.
Há indivíduos que, mesmo quando portadores de certas moléstias graves ou quando têm defeitos aberrantes, procuram evitar a formação de complexos, criam derivativos e chegam até à sublimação, e não se deixam vencer. Isto é prova de evolução espiritual. O livre-arbítrio não é, aí, absolutamente tolhido, como parece.
Foi este o ponto que o moço estudante quis refutar, quando fazíamos a nossa palestra sobre o livre-arbítrio e determinismo, tema velho e já muito surrado. Entendia o moço, dentro de uma concepção fundada sobre uma espécie de supremacia das glândulas endócrinas, que o homem não procede, não pode agir como quer, uma vez que está na dependência do estado de suas glândulas, principalmente a tiróide.
Se assim é, podemos concluir que todo o mecanismo dos atos humanos, toda a expressão do caráter, depende exclusivamente das glândulas.
Neste caso, a endocrinologia, que é apenas um campo de especialização, teria uma extensão incalculável, tal como a Filosofia, na Grécia antiga.
A endocrinologia, se lhe quiséssemos dar tanta amplitude, terminaria invadindo a própria seara da Filosofia, porque, assim, passaria a explicar tudo quanto se refere à vontade e às ações do homem no composto matéria-espírito.
No caso de admitirmos que a solução de todos os problemas do comportamento e até das atitudes íntimas da criatura humana esteja exclusivamente na endocrinologia, teremos de chegar à conclusão inevitável de que a reforma do homem é um problema clinico, é questão de tratamento das glândulas, não é um problema moral...
Como decorrência disto, poderemos dizer que a Doutrina Espírita nada mais tem que fazer, nem é necessário tentar corrigir o homem e a sociedade, por meio da doutrinação, pelo esclarecimento evangélico, porque é nas glândulas endócrinas que está a solução do problema. Isto é o que se pode chamar posição extremada.
Nem mesmo a criminologia, que já teve época em que se agarrou muito ao chamado “arbítrio das glândulas”, poderia esposar, hoje em dia, todas as afirmativas desta corrente cientifica. Há, na personalidade humana, elementos oriundos de existências anteriores.
Já dissemos aqui, como o fizemos por ocasião de nossa palestra, que o Espiritismo reconhece a influência do organismo sobre as faculdades e as ações da alma unida ao corpo. Não vai, porém, ao exagero de generalizar a explicação de fenômenos e atos cuja causa não pode, de forma alguma, ser encontrada no sistema endócrino.
A Doutrina Espírita é ainda mais objetiva quando diz que uma aberração física pode tolher a liberdade (Livro dos Espíritos, questão n.º 847). Isto, porém, não constitui nem pode constituir argumento para se negar à tese de que, pela evolução, o espírito encarnado pode superar deficiências orgânicas, e, assim, usar o seu livre-arbítrio. Uma aberração não destrói um principio. Ainda assim, dentro de outro principio da filosofia espírita – o de que o espírito, ao voltar à Terra, pela reencarnação, vai ter um corpo adequado às condições de vida em que terá de cumprir as suas provas ou desempenhar sua missão – ainda assim, repetimos, não fica anulado o livre-arbítrio, porque o espírito escolhe a prova antes de se realizar a reencarnação. Veja-se o Livro dos Espíritos, questão n.º 258, em cujo texto se lê o seguinte:
“Ele próprio (espírito) escolhe o gênero de provas que quer sofrer, e é nisto que consiste o livre-arbítrio”.
Por detrás de uma anomalia física, por detrás de uma aberração horrenda, ainda que o espírito encarnado seja tolhido na manifestação de sua vontade, nesta existência, se esconde um principio filosófico e se revela, até nisto, a existência do livre-arbítrio, porque o espírito pode amenizar os efeitos da prova.
É claro que, se ficarmos no campo restrito da endocrinologia, sem subirmos à esfera filosófica do problema, não poderemos compreender a incógnita...
Seja como for, a influência das glândulas no comportamento do homem, por força da ação do corpo sobre a alma, é tese pacífica, e pretender contrariá-la inteiramente é assumir posição anticientifica ou desconhecer o sentido progressivo do Espiritismo, em relação com o desenvolvimento da cultura humana.
Todavia, o que o Espiritismo repele, e repele em termos lógicos, com base na experiência, é a tese absoluta de que o homem não tem vontade, não é senhor de suas ações, é um irresponsável, porque todas as suas atitudes são determinadas pelas glândulas.
(1) A obra de Ortiz foi traduzida por Carlos Imbassahy e publicada pela Livraria Allan Kardec Editora (LAKE), de S. Paulo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário