Artigo extraído do livro "Em Busca do Mestre" - Edições FEESP - 4ª Edição - Março de 1995.
“O
reino dos céus é semelhante a um proprietário que saiu pela manhã a
assalariar trabalhadores para a sua vinha. Feito com eles o ajuste de um
denário por dia, mandou-os para a vinha.
Saindo à hora terceira, viu
outros na praça, desocupados, e disse-lhes: Ide também vós para a minha
vinha, e eu vos darei o que for justo. Eles foram.
Saiu às horas sexta e nona e fez o mesmo. Finalmente, indo à praça à hora undécima, e encontrando ali jornaleiros, disse-lhes: Por que estais todo o dia ociosos? Porque ninguém nos assalariou, responderam. Ide também vós à minha vinha e eu vos darei o que for justo.
À tarde chamou o seu
mordomo, dando a seguinte ordem: Chama os jornaleiros e paga-lhes o
salário, começando pelos últimos e acabando pelos primeiros.
Chegaram,
então, os da undécima hora e receberam um denário cada um. Vindo os
primeiros, esperavam receber mais; porém, lhes foi dada igual quantia.
Ao receberem-na, murmuravam contra o proprietário, alegando: Estes
últimos trabalharam uma hora e os igualastes a nós que suportamos o
calor do dia? Retrucou o proprietário a um deles: Meu amigo, não te faço
agravo nem injustiça: não ajustastes comigo um denário? Toma o que é
teu e vai-te embora; pois quero dar a este último tanto como a ti. Não
me é lícito fazer o que me apraz daquilo que é meu? Acaso teu olho é
mau, porque sou bom? Assim os últimos serão os primeiros, e os primeiros
serão os últimos; porque muitos são os chamados, mas poucos os
escolhidos”.
A alegoria acima – como, aliás, toda alegoria – exprime e revela um
princípio diferente daquele que literalmente enuncia. Parece, à primeira
vista, haver injustiça da parte daquele proprietário que manda pagar
igual aos obreiros das diversas horas do dia. Pois então – como alegam
os que iniciaram o labor pela manhã – será justo pagar o mesmo jornal a
nós e aos que entraram às 9, ao meio-dia e até mesmo à undécima hora?
Para entrarmos no mérito do critério em que se baseou o proprietário da
vinha, cumpre lembrarmos que a parábola em apreço tem relação com o
reino dos céus, isto é, com os meios e processos empregados para sua
conquista. Neste particular, o tempo constitui elemento de somenos
importância. “A cada um será dado segundo as suas obras” e não segundo o
tempo, mais ou menos dilatado, de sua atuação nos arraiais do credo que
professa. Assim, pois, se os jornaleiros da hora nona e do meio-dia
fizeram, pela maior soma de atividade empregada, tanto como os da manhã,
é natural que recebessem o mesmo jornal, por isso que o proprietário
havia prometido dar-lhes o que fosse justo. E aos da undécima hora?
Seria possível, em tão minguado tempo, fazer o mesmo que os demais? Pelo
dedo se conhece o gigante, reza o rifão popular. Que teriam produzido
aqueles assalariados ao decurso de uma hora? Aqui entra em jogo um fator
de sabida importância, no que respeita ao merecimento do obreiro: a
qualidade da obra.
Certamente, o pouco que fizeram os da undécima hora supera tanto em
qualidade, ao que fizeram os outros, em quantidade, que os bons olhos do
proprietário entenderam ser de justiça dar-lhes a mesma paga. Em
realidade o que ele viu é que o trabalho destes valia mais que os dos
outros, fazendo nesse cômputo abstração do fator tempo.
A sabedoria da sentença evangélica – a cada um será dado segundo as
suas obras – abrange dois aspectos distintos: o objetivo e o subjetivo.
Somente no conhecimento exato de ambos é possível apurar com acerto e
com justiça. Os homens julgam comumente através do prisma objetivo das
obras, porque não lhes é dado penetrar no plano subjetivo. Daí a
precariedade dos seus juízos e das suas sentenças. Por vezes, há mais
estimação nos feitos sem maior importância, que nas vultosas obras que
impressionam os sentidos. Aquela pobre viúva que lançou no gazofilácio
do templo duas moedinhas de cobre de valor ínfimo, deu mais, disse o
intérprete da divina justiça, do que os argentários que ali despejavam
moedas de ouro e mancheias. O valor da oferta da viúva é de natureza
subjetiva, está no que se não pode ver nem tocar, porquanto está na
intenção e nos motivos com que a oferta foi feita; está finalmente, no
sacrifício daquela mulher que se havia privado de tudo que possuía,
mesmo do que se achava reservado ao seu sustento. Os olhos humanos não
podem medir os valores dessa natureza, mas os do Filho de Deus vão
descobri-los nos íntimos recessos da alma humana.
Recapitulando, recordemos mais uma vez que a semelhança ora comentada
se relaciona com o reino dos céus. Somos todos jornaleiros da vinha do
Senhor, que é o planeta onde nos achamos. Cada um age no setor que lhe
foi destinado, iniciando o trabalho em horas diversas.
O Proprietário
observa atentamente a maneira como os seareiros mourejam, julgando o
mérito individual, não pelo tempo nem pelo volume da produção, mas pelo
cunho de perfeição imprimido à obra.
O bom obreiro tem os olhos fixos no
mister que executa e não nos ponteiros do relógio. Pensa menos na
recompensa que no bom acabamento da sua tarefa.
O trabalho é santo pela sua mesma natureza e, sobretudo, pela alma do
operário nele encarnada. “Só canta bem que canta por amor”. Os músculos
refletem as vibrações do cérebro e do coração. A inteligência e os
sentimentos dirigem as mãos, tanto do humilde operário como às do maior e
mais consumado artista. É com o Espírito, e não com o corpo, que se
constroem as obras que dignificam e imortalizam seus autores.
Nós, portanto, jornaleiros encontrados ociosos na praça, trabalhemos
com simplicidade e santidade na vinha do Senhor. Imprimamos em nossos
atos aquela naturalidade com que os pássaros gorjeiam e aquela dedicação
com que eles fazem os seus ninhos. Não os preocupemos com o peso e a
suntuosidade das nossas obras; tampouco nos deixemos impressionar com o
tempo que temos empregado em produzi-las e, menos ainda, com a
recompensa presente ou futura: Deus nos dará o que for justo. Confiemos,
como confiaram os jornaleiros das derradeiras horas, pois “os primeiros
serão os últimos e os últimos serão os primeiros; porque muitos serão
chamados e poucos os escolhidos”.
E, assim, verificamos que a parábola em apreço encerra a mais bela e excelente apologia da JUSTIÇA.
Pedro de Camargo ( Vinícius)