Capítulo XI
Da Proibição de Evocar os Mortos (continuação)
Tudo tinha a sua razão de ser na legislação de Moisés, porque tudo
nela estava previsto, até os menores detalhes. Mas a forma e o fundo
estavam de acordo com as circunstâncias em que os hebreus se
encontravam. Claro que se Moisés voltasse hoje e tivesse de dar um novo
código a uma nação civilizada da Europa, não recorreria mais àquele dos
hebreus.
6 — Objeta-se a isso que todas as leis de Moisés foram ditadas em
nome de Deus, como as recebidas no Sinai. Mas se considerarmos todas de
origem divina, porque os mandamentos de Deus formam apenas o decálogo? É
que se faz a distinção. Se todas emanassem de Deus, todas seriam
igualmente obrigatórias. Porque, pois, não observar a todas? Porque, por
exemplo, não foi observada a circunscrição que o próprio Jesus sofreu e
não aboliu? Esquecem-se de que todos os legisladores antigos, para
darem maior autoridade às suas leis, diziam tê-las recebido de uma
divindade. Moisés, mais do que qualquer outro, necessitava desse apoio
em virtude do caráter do seu povo. Se apesar disso lhe foi tão difícil
fazer-se obedecer, quanto pior não seria se tivesse promulgado essas
leis em seu próprio nome.
Jesus não veio modificar a lei mosaica, mas a sua lei não é hoje o
código dos cristãos? Não disse ele: "Sabeis que foi dito aos antigos tal
e tal coisa, mas eu vos digo esta outra coisa? Mas, assim dizendo,
tocou ele na lei do Sinai? De maneira alguma, pois a sancionou e toda a
sua doutrina moral não é mais do que o desenvolvimento daquela. Ora, em
nenhum momento ele se refere à proibição de evocar os mortos, entretanto
era essa uma questão bastante grave para que ele a tivesse omitido nas
suas instruções, quando tratou de outros assuntos de natureza
secundária.
7 — Em resumo, trata-se de saber se a Igreja coloca a lei mosaica
acima da lei evangélica, ou melhor dito, se ela é mais Judia do que
Cristã. É mesmo de se notar que de todas as religiões a que menos se
opôs ao Espiritismo foi a Judia, que não invocou contra as relações com
os mortos a lei de Moisés, sobre a qual entretanto se apoiam as seitas
Cristãs.(44)
8 — Há outra contradição. Se Moisés proibiu a evocação dos Espíritos
dos mortos, é que esses Espíritos podem manifestar-se, pois de outra
maneira a sua proibição seria inútil. Se eles podiam manifestar-se no
seu tempo, é claro que o podem ainda hoje. Se se trata dos Espíritos dos
mortos, não são exclusivamente os demônios que se manifestam. De resto,
Moisés não faz nenhuma referência a esses últimos.
É pois evidente que não se poderia apoiar logicamente na lei de
Moisés nesta circunstância, pelo duplo motivo de que ela não rege o
Cristianismo e não é apropriada aos costumes da nossa época. Mas, mesmo
supondo-se que tenha toda a autoridade que alguns lhe dão, ela não pode,
como acabamos de ver, aplicar-se ao Espiritismo.(45)
Moisés, é verdade, abrange na sua proibição a interrogação dos
mortos. Mas isso apenas de maneira secundária, como um acessório das
práticas de feitiçaria. A palavra interrogar, colocada ao lado das
palavras adivinhos e áugures, prova que entre os hebreus as evocações
constituíam um meio de adivinhação. Ora, os espíritas não evocam os
mortos para obter revelações ilícitas, mas para receberem os seus
conselhos e procurar o alívio dos que sofrem. É claro que se os hebreus
não se tivessem servido das comunicações de além-túmulo com esse fim,
longe de as proibir, Moisés as encorajaria, porque elas teriam tornado
melhor o seu povo.
9 — Se alguns críticos irônicos ou mal intencionados têm apresentado
as reuniões espíritas como assembléias de feitiçeiros e necromantes, e
os médiuns como ledores da sorte; se, por outro lado, alguns charlatães
misturam o nome do Espiritismo a práticas ridículas que ele desaprova,
entretanto muita gente sabe como considerar o caráter essencialmente
moral e sério das reuniões espíritas. Aliás, a doutrina escrita e
divulgada por todo o mundo protesta suficientemente contra os abusos de
toda espécie para que a calúnia possa recair sobre quem realmente a
merece.
10 — Dizem que a evocação é uma falta de respeito para com os mortos,
cujas cinzas não devemos perturbar. Quem diz isso? Os adversários dos
dois campos opostos, que nesse momento se dão as mãos: os incrédulos que
não crêem nas almas e os que, embora crendo, pretendem que elas não
podem manifestar-se e que o demônio é quem se manifesta.
(44) Esta observação de Kardec é das mais significativas e tem a sua
explicação na própria História da religião judaica, toda ela, como se vê
na Bíblia, na Kabala, no Talmud e na Literatura do povo hebreu, antiga e
moderna, — fundada nas manifestações espirituais. O teatro e a ficção
modernas de Israel, como a antiga literatura hebraica e a moderna
literatura ídiche não escapam à tradição das visões, das aparições e até
mesmo das materializações, que marcam toda a cultura judaica. No
próprio texto bíblico encontramos passagens em que Moisés, como no caso
típico de Eldad e Medad (Números, cap.13 v. 24 a 29) se declara
francamente favorável à mediunidade. Além disso, sabe-se que a tenda de
Moisés era uma câmara mediúnica em que o Espírito de Jeová chegava a
materializar-se. (N. do T.)
(45) As leis civis de Moisés pertencem a uma época bem definida da
História, que é a das civilizações agrárias. O próprio decálogo traz as
marcas dessa fase histórica e em nossos dias é divulgado com a supressão
dos pormenores que o tornariam ridículo aos nossos olhos. Trata-se,
pois, de legislação anacrônica. (N. do T.)
Capítulo XI
Da Proibição de Evocar os Mortos (continuação)
Quando a evocação é feita religiosamente, com o devido recolhimento;
quando os Espíritos são chamados com afeto e simpatia, pelo desejo
sincero de instrução e de aperfeiçoamento moral, e não por curiosidade;
não se percebe o que haveria de falta de respeito, e isso tanto ao
chamar as pessoas depois de mortas como durante a vida.
Mas há uma outra resposta decisiva a essa objeção. É que os Espíritos
se manifestam livremente e não de maneira forçada. Eles costumam vir
espontaneamente até nós, sem serem chamados, e revelam a satisfação de
poderem comunicar-se com os homens, lamentando freqüentemente o
esquecimento em que às vezes os deixam. Se eles fossem perturbados na
sua paz ou não gostassem de ser chamados, declarariam isso ou não nos
atenderiam. Desde que são livres, quando nos atendem é porque isso lhes
convém.
11 — Alega-se ainda: "As almas moram no lugar que a justiça de Deus
lhes determinou, seja no Inferno ou no Paraíso." Assim, as que estão no
inferno não podem sair, embora toda liberdade seja dada aos demônios
nesse sentido. As que estão no Paraíso acham-se inteiramente entregues à
beatitude e estão muito acima dos mortais para se preocuparem conosco,
sendo muito felizes para voltar a esta Terra de misérias,
interessando-se pelos parentes e amigos que aqui deixaram. Essas almas
seriam como os ricos que desviam a vista dos pobres, com receio de que
eles lhes perturbem a digestão? Se assim fosse, elas seriam bem pouco
dignas da felicidade suprema, que seria, por sua vez, o prêmio do
egoísmo.
Restam aquelas que estão no Purgatório. Mas essas são almas
sofredoras e têm de pensar antes de tudo na própria salvação. Dessa
maneira, nenhuma delas podendo nos atender, é somente o diabo que se
apresenta. Mas se elas não podem vir, não há nenhum motivo para temermos
perturbar o seu repouso.
12 — Aqui se apresenta outra dificuldade. Se as almas que estão na
beatitude não podem abandonar a sua morada feliz para socorrer os
mortais, porque a Igreja invoca a assistência dos santos, que devem
gozar da maior soma possível de beatitude? Por que aconselha ela aos
fiéis que os invoquem nas doenças, aflições e para se preservarem dos
flagelos? Por que, segundo ela, os santos, a própria Virgem mostram-se
aos homens através de visões e fazem milagres? Eles deixam, então, o céu
para vir à Terra. Se esses Espíritos que se encontram no mais alto dos
céus podem deixá-lo, por que motivo os que estão mais em baixo não o
poderiam?
13 —Que os incrédulos neguem a manifestação das almas, isso se
concebe em razão da sua própria descrença. Mas o que estranha é ver
aqueles cuja crença repousa precisamente na existência da alma e no seu
futuro, se encarniçarem contra os meios de se provar que ela existe,
esforçando-se por demonstrar que isso é impossível. Pareceria natural,
ao contrário, que os que têm maior interesse na sua existência
aceitassem com alegria e como uma graça da Providência o aparecimento
dos meios de confundir os negadores por provas irrecusáveis, desde que
são eles os negadores da própria religião.
Deploram essas pessoas, incessantemente, a propagação da
incredulidade que aniquila o rebanho de fiéis, mas quando se lhes
apresenta o mais poderoso meio de combatê-Ia, repelem-no com mais
obstinação do que os próprios incrédulos. Depois, quando as provas se
multiplicam a ponto de não deixarem nenhuma dúvida, recorrem como
argumento supremo à proibição de tratar do assunto, e procuram para
justificá-la um artigo da lei de Moisés de que ninguém se lembrava e ao
qual pretendem dar, de qualquer maneira, uma aplicação que não pode ter.
E ficam muito felizes com essa descoberta, sem perceberem que esse
mesmo artigo constitui uma justificação da Doutrina Espírita.
14 —Todos os motivos alegados contra as relações com os Espíritos não
podem suportar um exame sério. Do próprio empenho com que se entregam a
essa luta pode-se deduzir que a questão envolve grandes interesses,
pois do contrário não haveria tamanha insistência. Ao ver esta cruzada
de todos os cultos contra as manifestações, poderíamos dizer que eles
estão atemorizados. O verdadeiro motivo poderia ser o temor de que os
Espíritos, demasiado clarividentes, viessem esclarecer os homens sobre
os pontos que eles tentam manter na obscuridade, fazendo os homens
conhecerem de maneira precisa o que se refere ao outro mundo e às
verdadeiras condições para nele serem felizes ou infelizes.
É por isso que, da mesma maneira que se diz a uma criança: não vá lá
porque existe um lobisomem, dizem aos homens: não evoqueis os Espíritos,
pois quem atende é o Diabo. Mas não haverá dificuldade: se proibirem
aos homens de evocar os Espíritos, não poderão impedir os Espíritos de
virem até os homens para tirar a lâmpada debaixo do alqueire.
O culto religioso que estiver de posse da verdade absoluta nada terá a
temer da luz, porque a luz fará ressaltar a verdade e o demônio não
poderia prevalecer contra a verdade.