Enquanto
a Capital dos mineiros, dirigida pelos seus elementos eclesiásticos, se
prepara, esperando as grandes manifestações de fé do segundo congresso
Eucarístico Nacional,
chegam os turistas elegantes e os peregrinos invisíveis. Também eu quis
conhecer de perto as atividades religiosas dos conterrâneos de Augusto
de Lima.
Na praça Raul Soares,
espaçosa e ornamentada, vi o monumento dos congressistas, elevando-se
em forma de altar, onde os atos religiosos serão celebrados. No topo, a
custódia, rodeada de arcanjos petrificados, guardando o símbolo suave e
branco da eucaristia, e, cá em baixo, nas linhas irregulares da terra,
as acomodações largas e fartas, de onde o povo assistirá, comovido, às
manifestações de Minas católica.
Foi
nesse ambiente que a figura de um homem trajado à israelita, lembrando
alguns tipos que em Jerusalém se dirigem, frequentemente, para o lugar
sagrado das lamentações, aguçou a minha curiosidade incorrigível de
jornalista.
— Um judeu?! — exclamei, aguardando as novidades de uma entrevista.
— Sim, fui judeu, há algumas centenas de anos — respondeu laconicamente o interpelado.
— Vosso nome? — continuei.
— Simão Pedro.
— O Apóstolo?
E a veneranda figura respondeu afirmativamente, colando ao peito os cabelos respeitáveis da barba encanecida.
Surpreso
e sedento da sua palavra, contemplei aquela figura hebraica, cheia de
simplicidade e simpatia. Ao meu cérebro afluíam dezenas de perguntas,
sem que pudesse coordená-las devidamente.
— Mestre — disse-lhe, por fim —, vossa palavra tem
para o mundo um valor inestimável. A cristandade nunca vos julgou
acessível na face da Terra, acreditando que vos conserváveis no Céu, de
cujas portas resplandecentes guardáveis a chave maravilhosa. Não teríeis
algumas mensagens do Senhor para transmitir à Humanidade, neste momento
angustioso que as criaturas estão vivendo?
— Ignoro a razão por que revestiram a minha figura,
na Terra, de semelhantes honrarias. Como homem, não fui mais que um
obscuro pescador da Galileia e, como discípulo do Divino Mestre, não
tive a fé necessária nos momentos oportunos. O Senhor não poderia
portanto, conferir-me privilégios, quando amava todos os seus apóstolos
com igual amor.
— É conhecida, na história das origens do Cristianismo, a vossa desinteligência com Paulo de Tarso. Tudo isso é verdadeiro?
— De alguma forma, tudo isso é verdade — declarou
bondosamente o Apóstolo. — Mas, Paulo tinha razão. Sua palavra enérgica
evitou que se criasse uma aristocracia injustificável, que, sem ele,
teria de desenvolver-se fatalmente entre os amigos de Jesus, que se
haviam retirado de Jerusalém para as regiões da Bataneia.
— Expressão autêntica da biografia e dos atos do
Divino Mestre, não seria possível acrescentar qualquer coisa a esse
livro sagrado. Muita iniquidade se tem verificado no mundo em nome do
estatuto divino, quando todas as hipocrisias e injustiças estão nele
sumariamente condenadas.
— Não é propriamente milagre o que caracterizou as
ações práticas do Senhor. Todos os seus atos foram resultantes do seu
imenso poder espiritual. Todas as obras a que se referem os Evangelistas
são profundamente verdadeiras.
— Em Cafarnaum, perto de Genesaré, e em Betsaida,
muitas vezes acompanhei o Senhor nas suas abençoadas peregrinações. Na
Samaria, ao lado de Cesareia de Filipe, vi suas mãos carinhosas dar
vista aos cegos e consolação aos desesperados. Aquele sol claro e
ardente da Galileia ainda hoje ilumina toda a minha alma e, decorridos
tantos séculos depois de minhas lutas no mundo, ao lado de alguns
companheiros procuro reivindicar para os homens a vida perfeita do
Cristianismo, com o advento do Reino de Deus, que Jesus desejou fundar,
com o seu exemplo, em cada coração.
—
Os filósofos terrenos são quase unânimes em afirmar que o Cristo não
conhecia a evolução da ciência grega, naquela época, e que as suas
parábolas fazem supor a sua ignorância acerca da organização política do
Império Romano; seus apóstolos falam de reis e príncipes que não
poderiam ter existido.
— A ação do Cristo — retrucou o apóstolo — vai mais
longe que todas as atividades e investigações das filosofias humanas.
Cada século que passa imprime um brilho novo à sua figura e um novo
fulgor ao seu ensinamento. Ele não foi alheio aos trabalhos do
pensamento dos seus contemporâneos. Naquele tempo, as teorias de
Lucrécio, expendidas alguns anos antes da obra do Senhor, e as lições de
Filon em Alexandria eram muito inferiores às verdades celestes que ele
vinha trazer à Humanidade atormentada e sofredora…
E, quando a figura veneranda de Simão parecia prestes a prosseguir na sua jornada, inquiri, abruptamente:
— Qual o vosso objetivo, atualmente, no Brasil?
— Venho visitar a obra do Evangelho aqui instituída por Ismael, filho de Abraão e de Agar e dirigida dos Espaços por abnegados apóstolos da fraternidade cristã.
Mas, o bondoso Apóstolo expressou uma atitude de profunda incompreensão, ao ouvir as minhas derradeiras palavras.
Foi quando, então, lhe mostrei o rico monumento
festivo, as igrejas enfeitadas de ouro, os movimentos de recepção aos
prelados, exclamando ele, afinal:
—
Não, meu filho!… Esperam-me longe destas ostentações mentirosas os
humildes e os desconsolados. O Reino de Deus ainda é a promessa para
todos os pobres e para todos os aflitos da Terra. A Igreja romana, cujo
chefe se diz possuidor de um trono que me pertence, está condenada no
próprio Evangelho, com todas as suas grandezas bem tristes e bem
miseráveis. A cadeira de São Pedro é para mim uma ironia muito amarga…
Nestes templos faustosos não há lugares para Jesus, nem para os seus
continuadores…
— E que sugeris, Mestre, para esclarecer a verdade?
Mas,
nesse momento, o Apóstolo venerando enviou-me um gesto compassivo e
piedoso, continuando o seu caminho, depois de amarrar, resignadamente, o
cordão das sandálias.
.Humberto de Campos
(.Irmão X)
25 de agosto de 1936.