( Alguns trechos foram subtraídos para não tornar tão extenso)
IRMÃ CLARA
André Luiz
XXII
(...)Por que motivo
rogaria ele o concurso de outrem, quando se dirigira com tanto êxito à
mente de Esteves e Armando, reencarnados? não lhes favorecera o retrocesso
da memória, até os recuados dias da luta no Paraguai? porque não
conseguiria doutrinar também a desditosa irmã enferma?
O Ministro ouviu-me,
tolerante, e redargüiu:
‑ Iludes-te. Nem
sempre doutrinar será transformar. Efetivamente, guardo alguma força
magnética suficientemente desenvolvida, capaz de operar sobre a mente de
nossos companheiros em recuperação; no entanto, ainda não disponho de
sentimento sublimado, suscetível de garantir a renovação da alma. Sem
dúvida, dentro de minhas limitações, estou habilitado a falar à
inteligência, mas não me sinto à altura de redimir corações. Para esse
fim, para decifrar os complicados labirintos do sofrimento moral, é
imprescindível haver atingido mais elevados degraus na humana compreensão.
Dispunha-me a
desfechar novo interrogatório, contudo, nosso orientador indicou-nos bela
edificação próxima.
Cercada de arvoredo,
que servia de enfeite a espaçosos canteiros de flores, a residência de
Clara figurou-se-nos pequeno colégio ou gracioso internato de moças.
Até certo ponto, não
nos enganáramos.
A nossa anfitriã não
morava num estabelecimento de ensino, entretanto, mantinha em casa um
verdadeiro educandário, tão grandes e luzidas eram as assembléias
instrutivas que sabia organizar.
Recebeu-nos em
extenso salão, onde era atenciosamente ouvida por quatro dezenas de alunos
de variadas condições, que se instalavam à vontade, em grupos diversos,
sem qualquer idéia de escola assinalando o ambiente em sua feição
exterior.
De olhos rasgados e
lúcidos a lhe marcarem magnificamente o semblante com os traços
aristocráticos do rosto emoldurados pela basta cabeleira, Clara parecia
uma jovem madona, detida entre os melhores dons da mocidade e da madureza.
Estendeu-nos as mãos pequenas e finas, respondendo-nos às saudações com
alegria sincera.
Nosso orientador
rogou excusas, pela nossa interferência no trabalho.
‑ Não se incomodem –
acentuou a interlocutora, encantadoramente natural ‑, achamo-nos num curso
rápido, acerca da importância da voz a serviço da palavra. Podem
partilhá-lo conosco. Nossa aula é uma simples conversação ...
Fitando bondosamente
o Ministro, rematou:
‑ Sentem-se. Sou eu
quem pede perdão por fazê-los esperar mais um pouco. Em breves instantes,
todavia, entraremos em nosso entendimento mais íntimo.
E, voltando à
poltrona que nada tinha de cátedra, sem qualquer atitude professoral, tão
grande era o doce ambiente de maternidade que sabia irradiar de si,
começou a dizer para os aprendizes:
‑ Conforme estudamos
na noite de hoje, a palavra, qualquer que ela seja, surge invariavelmente
dotada de energias elétricas específicas, libertando raios de natureza
dinâmica. A mente, como não ignoramos, é o incessante gerador de força,
através dos fios positivos e negativos do sentimento e do pensamento,
produzindo o verbo que é sempre uma descarga electromagnética, regulada
pela voz. Por isso mesmo, em todos os nossos campos de atividade, a voz
nos tonaliza a exteriorização, reclamando apuro de vida interior, de vez
que a palavra, depois do impulso mental, vive na base da criação; é por
ela que os homens se aproximam e se ajustam para o serviço que lhes
compete e, pela voz, o trabalho pode se favorecido ou retardado, no espaço
e no tempo.
Dentro da pausa
ligeira que se fizera espontânea, simpática senhora interrogou:
‑ Mas, para que
tenhamos a solução do problema, é indispensável jamais nos encolerizarmos?
‑ Sim – elucidou a
instrutora, calma ‑, indiscutivelmente, a cólera não aproveita a ninguém,
não passa de perigoso curto-circuito de nossas forças mentais, por defeito
na instalação de nosso mundo emotivo, arremessando raios destruidores, ao
redor de nossos passos ...
Sorrindo bem
humorada, acrescentou:
‑ Em tais ocasiões,
se não encontramos, junto de nós, alguém com o material isolante da oração
ou da paciência, o súbito desequilíbrio de nossas energias estabelece os
mais altos prejuízos à nossa vida, porque os pensamentos desvairados, em
se interiorizando, provocam a temporária cegueira de nossa mente,
arrojando-a em sensações de remoto pretérito, nas quais como que descemos
quase sem perceber a infelizes experiências da animalidade inferior. A
cólera,segundo reconhecemos, não pode e nem deve comparecer em nossas
observações, relativas à voz. A criatura enfurecida é um dínamo em
descontrole, cujo contato pode gerar as mais estranhas perturbações.
Um moço, com
evidente interesse nas lições, argumentou:
‑ E se
substituíssemos o termo «cólera» pelo termo «indignação»?
Irmã Clara pensou
alguns instantes e redarguiu:
‑ Efetivamente, não
poderíamos completar os nossos apontamentos, sem analisar a indignação
como estado dalma, por vezes necessário. Naturalmente é imprescindível
fugir aos excessos. Contrariar-se alguém a propósito de bagatelas e a
todos os instantes do dia será baratear os dons da vida, desperdiçando-os,
de modo inconseqüente, sem o mínimo proveito para si mesmo ou para os
outros. Imaginemos a indignação por subida de tensão na usina de nossos
recursos orgânicos, criando efeitos especiais à eficiência de nossas
tarefas. Nos casos de exceção, em que semelhante diferença de potencial
ocorre em nossa vida íntima, não podemos esquecer o controle da inflexão
vocal. Assim como a administração da energia elétrica reclama atenção para
a voltagem, precisamos vigiar a nossa indignação principalmente quando
seja imperioso vertê-la através da palavra, carregando a nossa voz tão
somente com a força suscetível de ser aproveitada por aqueles a quem
endereçamos a carga de nossos sentimentos. É indispensável modular a
expressão da frase, como se gradua a emissão elétrica...
E, ante a assembléia
que lhe registrava os ensinamentos com justificável respeito, prosseguiu,
depois de ligeiro intervalo:
‑ Nossa vida pode
ser comparada a grande curso educativo, em cujas classes inumeráveis damos
e recebemos, ajudamos e somos ajudados. A serenidade, em todas as
circunstâncias, será sempre a nossa melhor conselheira, mas, em alguns
aspectos de nossa luta, a indignação é necessária para marcar a nossa
repulsa contra os atos deliberados de rebelião ante as Leis do Senhor.
Essa elevada tensão de espírito, porém, nunca deve arrojar-se à violência
e jamais deve perder a dignidade de que fomos investidos, recebendo da
Divina Confiança a graça do conhecimento superior. Basta, dentro dela, a
nossa abstenção dos atos que intimamente reprovamos, porque a nossa
atitude é uma corrente de indução magnética. Em torno de nós, quem
simpatiza conosco geralmente faz aquilo que nos vê fazer. Nosso exemplo,
em razão disso, é um fulcro de atração. Precisamos, assim, de muita
cautela com a palavra, nos momentos de tensão alta do nosso mundo emotivo,
a fim de que a nossa voz não se desmande em gritos selvagens ou em
considerações cruéis que não passam de choques mortíferos que infligimos
aos outros, semeando espinheiros de antipatia e revolta que nos
prejudicarão a própria tarefa.
Um amigo que
acompanhava os ensinamentos, com interesse invulgar, perguntou,
respeitoso:
‑ Irmã Clara, como
devemos interpretar as perturbações da voz, como, por exemplo, a gaguez e
a diplofonia?
‑ Sem dúvida –
informou a instrutora, solícita ‑, os órgãos vocais experimentam
igualmente lutas e provações quando reclamam reajuste. Por intermédio da
voz, praticamos vários delitos de tirania mental e, através dela, nos cabe
reparar os débitos contraídos. As enfermidades dessa ordem compelem-nos ao
trabalho de recuperação no silêncio, de vez que, sofrendo a alheia
observação, aprendemos pouco a pouco a governar os próprios impulsos,
afeiçoando-os ao bem.
A orientadora, que
falava com absoluta simplicidade e à maneira de um anjo maternal
dirigindo-se aos filhinhos, comentou, ainda por alguns minutos, o tema
singular com surpreendente primor de definição.
Depois, finda a
aula, permaneceram no belo domicílio tão somente algumas jovens que
encontravam em nossa anfitriã desvelada benfeitora.
Clara convidou-nos a
pequena peça contígua e o Ministro deu-lhe a conhecer o objetivo de nossa
visitação. Alguém na Terra precisava ouvi-la, a fim de modificar-se. A
interlocutora perguntou, com carinho, quanto às particularidades do
serviço que pretendíamos realizar.
Clarêncio resumiu o
drama que nos empolgava a atenção.
Quando se inteirou
de que amargurada mulher devia renunciar ao companheiro que permanecia na
Terra, vimos imensa compaixão se lhe estampar no rosto. Seus olhos
enevoaram-se de lágrimas que não chegaram a cair ...
Compreendi que a
nobre instrutora, aureolada de soberanos valores morais, trazia consigo
profundas mágoas imanifestas. Certamente, buscávamos reconforto para um
coração infeliz num coração que talvez estivesse padecendo ainda mais ...
‑ Pobre criatura! –
disse a orientadora, comovida.
E, afirmando-se com
tempo bastante para ausentar-se, acolheu-nos o apelo e dispôs-se a
seguir-nos generosamente.
Fonte: Livro “Entre
a Terra e o Céu” – Psicografia de Francisco Cândido Xavier pelo Espírito
de André Lui