Introdução de Kardec ao primeiro número da Revista de janeiro de 1858.
A
rapidez com que em todas as partes do mundo se propagaram os estranhos
fenômenos das manifestações espíritas é uma prova do interesse que
despertam.
A
princípio simples objeto de curiosidade, não tardaram em chamar a
atenção de homens sérios que, desde o início, entreviram a inevitável
influência que viriam a ter sobre o estado moral da sociedade. Cada dia
se tornam mais populares as ideias novas que deles surgem, e nada lhes
barrará o progresso, pela simples razão de que estes fenômenos estão ao
alcance de todos, ou de quase todos, e nenhum poder humano lhes impedirá
a manifestação. Se os abafam num ponto, aparecem em cem outros.
Aqueles, pois, que neles descobrissem um inconveniente qualquer, seriam
constrangidos, pela mesma força dos fatos, a lhes sofrer as
consequências, como acontece às indústrias novas que, de começo, ferem
interesses particulares, mas, ao final das contas, todos se acomodam,
porque não poderia ser de outro modo.
O
que não foi feito e dito contra o magnetismo! Entretanto, todos os
raios lançados contra ele, todas as armas com que foi ferido, inclusive o
ridículo, esbarraram ante a realidade e apenas serviram para colocá-lo
em maior evidência. É que o magnetismo é uma força natural, e ante as
forças naturais o homem é um pigmeu, semelhante a esses cachorrinhos que
ladram inutilmente contra tudo quanto lhes mete medo.
Dá-se
com as manifestações espíritas o mesmo que com o sonambulismo: se elas
não se produzirem à luz do dia e publicamente, ninguém impedirá que
ocorram na intimidade, pois cada família pode descobrir um médium entre
os seus membros, desde as crianças até os velhos, bem como pode
encontrar um sonâmbulo. Assim, quem poderá impedir que o primeiro que
encontramos seja médium e sonâmbulo? Sem dúvida, os que o combatem não
pensaram nisto. Insistimos: quando uma força está na Natureza, pode ser
paralisada por um instante, mas nunca aniquilada! Apenas poder-se-á
desviar o seu curso. Ora, a força que se revela no fenômeno das
manifestações, seja qual for a sua causa, está na Natureza, assim como o
magnetismo, e não será aniquilada, como o não será a força elétrica. O
que é preciso é que seja observada e estudada em todas as suas fases, a
fim de se deduzirem as leis que a regem. Se for um erro e uma ilusão, o
tempo fará justiça; se for a verdade, esta é como o vapor: quanto mais
comprimido, maior será a sua força de expansão.
Admiram-se
de que enquanto na América só os Estados Unidos possuem dezessete
jornais consagrados ao assunto, sem contar um sem-número de escritos não
periódicos, a França, o país da Europa onde mais rapidamente as ideias
se aclimataram, não possua nenhum.
Seria desnecessário contestar a utilidade de um órgão especial que
ponha o público a par do progresso desta nova ciência e a premuna contra
os exageros da credulidade, tanto quanto do cepticismo. É uma tal
lacuna que nos propomos preencher com a publicação desta Revista, com o
fito de oferecer um meio de comunicação a todos quantos se interessam
por estas questões e de ligar, por um laço comum, os que compreendem a
Doutrina Espírita sob seu verdadeiro ponto de vista moral: a prática do
bem e a caridade evangélica para com todos.
Se
se tratasse apenas de uma coleta de fatos, fácil seria a tarefa. Eles
se multiplicam em toda parte com tal rapidez que não faltaria matéria,
mas os fatos, por si sós, tornam-se monótonos pela repetição e,
principalmente, pela similitude. O que é necessário ao homem que pensa é
algo que lhe fale à inteligência. Faz poucos anos que se manifestaram
os primeiros fenômenos e já estamos longe das mesas girantes e falantes
que representaram sua infância. Hoje é uma Ciência que descobre todo um
mundo de mistérios; que patenteia as verdades eternas apenas
pressentidas por nosso espírito. É uma doutrina sublime que mostra ao
homem o caminho do dever e descobre o mais vasto campo jamais
apresentado à observação do filósofo. Nossa obra seria, pois, incompleta
e estéril se nos mantivéssemos nos estreitos limites de uma revista
anedótica, cujo interesse em breve teria passado.
Talvez nos contestem a denominação de Ciência, que damos ao Espiritismo. Ele não teria, sem dúvida e em nenhum caso, as
características de uma Ciência exata, e precisamente nisso está o erro
dos que o pretendem julgar e experimentar como uma análise química ou um
problema de Matemática; já é bastante que seja uma Ciência filosófica.
Toda Ciência deve basear-se em fatos, mas estes, por si sós, não
constituem a Ciência. Ela nasce da coordenação e da dedução lógica dos
fatos: é o conjunto de leis que os regem. Chegou o Espiritismo ao estado
de Ciência? Se se trata de uma Ciência acabada, sem dúvida será
prematuro responder afirmativamente, mas as observações já são hoje
bastante numerosas para permitirem pelo menos deduzir os princípios
gerais, onde começa a Ciência.
O
exame raciocinado dos fatos e das consequências deles decorrentes é,
pois, um complemento, sem o qual nossa publicação seria de medíocre
utilidade e apenas ofereceria um interesse secundário a quem reflete e
quer dar-se conta do que vê. Contudo, como nosso objetivo é chegar à
verdade, acolheremos todas as observações que nos forem dirigidas e,
tanto quanto o permitir o estado dos conhecimentos adquiridos,
procuraremos resolver as dúvidas e esclarecer os pontos ainda obscuros.
Nossa Revista será, assim, uma tribuna, na qual, entretanto, a discussão
jamais deverá afastar-se das normas das mais estritas conveniências.
Numa palavra, discutiremos, mas não disputaremos.
As inconveniências de linguagem jamais foram boas razões aos olhos da
gente sensata: é a arma daqueles que não possuem algo melhor, e que se
volta contra quem a maneja.
Embora
os fenômenos de que nos ocupamos se tenham produzido, nos últimos
tempos, de maneira mais geral, tudo prova que têm ocorrido desde as eras
mais remotas. Não acontece com os fenômenos naturais o mesmo que
acontece nas invenções que acompanham o progresso do espírito humano,
pois desde que estão na ordem das coisas, sua causa é tão antiga quanto o
mundo e os seus efeitos devem ter-se produzido em todas as épocas.
Portanto, o que hoje testemunhamos não é uma descoberta moderna: é o
despertar da Antiguidade, mas da Antiguidade desembaraçada do envoltório
místico que gerou as superstições; da Antiguidade esclarecida pela
civilização e pelo progresso no campo das coisas positivas.
A
consequência capital que decorre desses fenômenos é a comunicação que
os homens podem estabelecer com os seres do mundo incorpóreo e, dentro
de certos limites, o conhecimento que podem adquirir de seu estado
futuro. O fato das comunicações com o mundo invisível acha-se, em
termos inequívocos, nos livros bíblicos. Mas de um lado, para alguns
cépticos, a Bíblia não é autoridade suficiente; do outro, para os
crentes, são fatos sobrenaturais, suscitados por um favor especial da
Divindade. Não representariam, então, para todo o mundo, uma prova da
generalidade dessas manifestações, se as não encontrássemos em mil
outras fontes diversas. A existência dos Espíritos e sua intervenção no
mundo corpóreo é atestada e demonstrada, não como um fato excepcional,
mas como um princípio geral, em Santo Agostinho, São Jerônimo, São João
Crisóstomo e São Gregório Nazianzeno e muitos outros Pais da Igreja.
Esta crença forma, além disso, a base de todos os sistemas religiosos.
Os mais sábios filósofos da Antiguidade a admitiam: Platão, Zoroastro,
Confúcio, Apuleio, Pitágoras, Apolônio de Tiana e tantos outros.
Encontramo-la no mistério e nos oráculos, entre os gregos, os egípcios,
os hindus, os caldeus, os romanos, os persas, os chineses. Vemo-la
sobreviver a todas as vicissitudes dos povos, a todas as perseguições, e
desafiar todas as revoluções físicas e morais da Humanidade.
Mais
tarde a encontramos entre os adivinhos e feiticeiros da Idade Média;
nos Willis e nas Valquírias dos escandinavos; nos Elfos dos teutões; nos
Leschios e nos Domeschnios Doughi dos eslavos; nos Ourisks e nos
Brownies da Escócia; nos Poulpicans e nos Tensarpoulicts dos bretões;
nos Cemis dos caraíbas; numa palavra, em toda a falange de ninfas,
gênios bons e maus, silfos, gnomos, fadas e duendes, com os quais todas
as nações encheram o espaço.
Encontramos
a prática das evocações nos povos da Sibéria, no Kamtchatka, na
Islândia, entre os índios da América do Norte ou os aborígines do México
e do Peru, na Polinésia e até entre os ignorantes selvagens da Nova
Holanda.
Não
será por alguns absurdos de que essa crença se cercou ou se revestiu em
vários tempos e lugares que se há de desconhecer que parte de um mesmo
princípio, mais ou menos desfigurado. Ora, uma doutrina não se torna
universal, não sobrevive a milhares de gerações, não se implanta de um
polo a outro, entre os povos mais diversificados e em todos os graus da
escala social, se não estiver fundada em algo de positivo.
O
que será esse algo? É o que no-lo demonstram as recentes manifestações.
Procurar as relações possivelmente existentes entre essas manifestações
e todas essas crenças é buscar a verdade.
A
história da Doutrina Espírita é, de certo modo, a história do espírito
humano. Teremos que estudá-la em todas as fontes, que nos facultarão um
veio inesgotável de observações tão instrutivas quão interessantes,
sobre os fatos geralmente pouco conhecidos. Esta parte nos dará
oportunidade de explicar a origem de uma porção de lendas e de crenças
populares que participam da verdade, da alegoria e da superstição.
No
que concerne às manifestações atuais, relataremos todos os fenômenos
patentes que testemunharmos ou que chegarem ao nosso conhecimento,
sempre que nos parecerem merecedores da atenção dos nossos leitores. Do
mesmo modo o faremos em relação aos efeitos espontâneos, por vezes
produzidos entre pessoas alheias às práticas espíritas, que ora revelam
um poder oculto, ora a independência da alma. Tais são as visões, as
aparições, a dupla vista, os pressentimentos, os avisos íntimos, as
vozes secretas, etc.
Ao
relato dos fatos juntaremos a explicação, tal qual ressalta do conjunto
dos princípios. A este respeito faremos notar que esses princípios são
decorrentes do ensino dado pelos Espíritos, e que faremos sempre
abstração de nossas próprias ideias. Não se trata, pois, de uma teoria
pessoal, mas da que nos foi comunicada e da qual seremos simples
intérpretes.
Largo
espaço será igualmente reservado às comunicações escritas ou verbais
dos Espíritos, desde que tenham um fim útil, assim como às evocações de
personagens antigas ou atuais, conhecidas ou obscuras, sem desprezar as
evocações íntimas que, muitas vezes, nem por isso são menos instrutivas.
Numa palavra: abarcaremos todas as fases das manifestações materiais e
inteligentes do mundo incorpóreo.
A
Doutrina Espírita oferece-nos enfim a solução possível e racional de
uma porção de fenômenos morais e antropológicos que testemunhamos
diariamente e cuja explicação inutilmente buscaríamos em todas as
doutrinas conhecidas. Nesta categoria colocaremos, por exemplo, a
simultaneidade de pensamentos, as anomalias de certos caracteres, as
simpatias e antipatias, os conhecimentos intuitivos, as aptidões, as
propensões, os destinos que parecem marcas da fatalidade e, num quadro
mais geral, o caráter distintivo dos povos, seu progresso ou sua
degenerescência, etc.
À
citação dos fatos juntaremos a pesquisa das causas que poderiam tê-los
produzido. Da apreciação dos atos brotarão, naturalmente, ensinamentos
úteis, quanto à linha de conduta mais conforme à sã moral.
Em
suas instruções os Espíritos superiores têm sempre o objetivo de
despertar nos homens o amor do bem pela prática dos preceitos
evangélicos, por isso mesmo traçam-nos o pensamento que deve presidir à
redação desta coletânea.
Como
se vê, nosso quadro compreende tudo quanto se liga ao conhecimento da
parte metafísica do homem. Estudá-la-emos no seu estado presente e no
futuro, pois estudar a natureza dos Espíritos é estudar o homem, porque
este um dia participará do mundo dos Espíritos. Eis por que adicionamos
ao título principal, o subtítulo jornal de estudos psicológicos, a fim de dar a compreender toda a sua importância.
NOTA:
Por mais abundantes que sejam nossas observações pessoais e as fontes
onde as colhemos, nem dissimulamos as dificuldades da tarefa, nem nossa
insuficiência. Para suplementá-la, contamos com o concurso benévolo de
todos quantos se interessam por esses problemas. Seremos, pois, gratos
pelas comunicações que nos forem transmitidas sobre os diversos assuntos
de nossos estudos. Neste propósito chamamos a atenção para os dez
pontos seguintes, sobre os quais nos poderão fornecer documentos:
1.º) Manifestações materiais ou inteligentes obtidas em reuniões a que estiveram presentes;
2.º) Fatos de lucidez sonambúlica e de êxtase;
3.º) Fatos de segunda vista, previsões, pressentimentos, etc.;
4.º) Fatos relativos ao poder oculto atribuído, com ou sem razão, a certas pessoas;
5.º) Lendas e crenças populares;
6.º) Fatos de visões e aparições;
7.º) Fenômenos psicológicos particulares que por vezes ocorrem no momento da morte;
8.º) Problemas morais e psicológicos a resolver;
9.º) Fatos morais, atos notáveis de devotamento e abnegação cuja propagação pode servir de exemplo útil;
10.º)
Indicações de obras antigas ou modernas, francesas ou estrangeiras, nas
quais se encontrem fatos relativos à manifestação de inteligências
ocultas com a designação e, se possível, a citação das passagens. O
mesmo no que concerne à opinião emitida sobre a existência dos Espíritos
e suas relações com os homens, por autores antigos ou modernos, cujo
nome e saber lhes dão autoridade.
Só publicaremos o nome das pessoas que nos enviarem comunicações se recebermos formal autorização.