(...)"antes de tudo, devo afirmar que não fui um herói e sim um Espírito em prova, servindo simultaneamente à causa da liberdade da minha terra. Quanto à Inconfidência de Minas, não foi propriamente um movimento nativista, apesar de ter aí ficado como roteiro luminoso para a independência da pátria. Hoje posso perceber que o nosso movimento era um projeto por demais elevado para as forças com que podia contar o Brasil daquela época, reconhecendo como o idealismo eliminou em nosso espírito todas as noções da realidade prática(...) Fomos os títeres de alguns portugueses liberais, que, na colônia, desejavam adaptar-se ao novo período histórico do planeta, aproveitando-se dos nossos primeiros surtos de nacionalismo. Não possuíamos um índice forte de brasilidade que nos assegurasse a vitória, e a verdade só me foi intuitivamente revelada quando as autoridades do Rio mandaram prender-me na rua dos Latoeiros.”(...)A nação ainda não foi realizada para criar-se uma linha histórica, mantenedora da sua perfeita independência. Todavia, a vitalidade de um povo reside na organização da sua economia e a economia do Brasil está muito longe de ser realizada. A ausência de um interesse comum em favor do País, dá causa não mais à derrama dos impostos, mas ao derrame das ambições, onde todos querem mandar, sem saberem dirigir a si próprios.”
Tirandentes:
Dos infelizes protagonistas da Inconfidência Mineira, no dia 21 de abril de todos os anos, aqueles que podem excursionar pela Terra volvem às ruínas de Ouro Preto,
a fim de se reunirem entre as velhas paredes da casa humilde do sítio
da Cachoeira, trazendo a sua homenagem de amor à personalidade do
Tiradentes.
Nessas
assembleias espirituais, que os encarnados poderiam considerar como
reuniões de sombras, os preitos de amor são mais expressivos e mais
sinceros, livres de todos os enganos da História e das hipocrisias
convencionais.
Ainda
agora, compareci a essa festividade de corações, integrando a caravana
de alguns brasileiros desencarnados, que para lá se dirigiu,
associando-se às comemorações do protomártir da emancipação do País.
Nunca
tive muito contato com as coisas de Minas Gerais, mas a antiga Vila Rica
[atualmente Ouro Preto], atualmente elevada à condição de Monumento
Nacional, pelas suas relíquias prestigiosas, sempre me impressionou pela
sua beleza sugestiva e legendária. Nas suas ruas tortuosas, percebe-se a
mesma fisionomia do Brasil dos vice-reis. Uma coroa de lendas suaves
paira sobre as suas ladeiras e sobre os seus edifícios seculares,
embriagando o espírito do forasteiro com melodias longínquas e perfumes
distantes. Na terra empedrada, ainda existem sinais de passos dos
antigos conquistadores do ouro dos seus rios e das suas minas e, nas
igrejas, ainda se ouvem soluços de escravos, misturados com gritos de
sonhos mortos, do seu valoroso heroísmo. A velha Vila Rica, com a névoa
fria dos seus horizontes, parece viver agora com as suas saudades de
cada dia e com as suas recordações de cada noite.
Sem me
alongar nos lances descritivos acerca dos seus tesouros do passado,
objeto da observação de jornalistas e escritores de todos os tempos,
devo dizer que, na noite de hoje, a casa antiga dos Inconfidentes tem
estado cheia das sombras dos mortos. Aí fui encontrar, não segundo o
corpo, mas segundo o Espírito, as personalidades de Domingos Vidal
Barbosa, Freire de Andrada, Mariano Leal, Joaquim da Maia, Cláudio
Manuel, Inácio Alvarenga, Doroteia de Seixas, Beatriz Francisca Brandão,
Toledo Pisa, Luís de Vasconcelos e muitos outros nomes, que
participaram dos acontecimentos relativos à malograda conspiração. Mas,
de todas as figuras veneráveis ao alcance dos meus olhos, a que me
sugeria as grandes afirmações da pátria era, sem dúvida, a do antigo
alferes Joaquim José da Silva Xavier, pela sua nobre e serena beleza. Do seu olhar claro e doce, irradiava-se
toda uma onda de estranhas revelações, e não foi sem timidez que me
acerquei da sua personalidade, provocando a sua palavra.
Falando-lhe
a respeito do movimento de emancipação política, do qual havia sido o
herói extraordinário, declinei minha qualidade de seu ex-compatriota,
filho do Maranhão, que também combatera, no passado, contra o domínio
dos estrangeiros.
— “Meu amigo — declarou com bondade —, antes de
tudo, devo afirmar que não fui um herói e sim um Espírito em prova,
servindo simultaneamente à causa da liberdade da minha terra. Quanto à
Inconfidência de Minas, não foi propriamente um movimento nativista, apesar de ter aí ficado como roteiro luminoso para a independência da pátria. Hoje
posso perceber que o nosso movimento era um projeto por demais elevado
para as forças com que podia contar o Brasil daquela época, reconhecendo
como o idealismo eliminou em nosso espírito todas as noções da
realidade prática mas, estávamos embriagados pelas ideias generosas que
nos chegavam da Europa, através da educação universitária. E, sobretudo,
o exemplo dos Estados Americanos do Norte, que afirmaram os princípios
imortais do direito do homem, muito antes do verbo inflamado de
Mirabeau, era uma luz incendiando a nossa imaginação. O Congresso de Filadélfia,
que reconheceu todas as doutrinas democráticas, em 1776,
afigurou-se-nos uma garantia da concretização dos nossos sonhos. Por
intermédio de José Joaquim da Maia procuramos sondar o pensamento de
Jefferson, em Paris, a nosso respeito; mas, infelizmente, não percebíamos que a
luta, como ainda hoje se verifica no mundo, era de princípios. O
fenômeno que se operava no terreno político e social era o desprezo do
absolutismo e da tradição, para que o racionalismo dirigisse a vida dos
homens. Fomos os títeres de alguns portugueses liberais, que, na
colônia, desejavam adaptar-se ao novo período histórico do planeta,
aproveitando-se dos nossos primeiros surtos de nacionalismo. Não
possuíamos um índice forte de brasilidade que nos assegurasse a vitória,
e a verdade só me foi intuitivamente revelada quando as autoridades do
Rio mandaram prender-me na rua dos Latoeiros.”
— “Hoje, de modo algum desejaria avivar minhas
amargas lembranças… Aliás não foi apenas Silvério quem nos denunciou
perante o Visconde de Barbacena; muitos outros fizeram o mesmo, chegando
um deles a se disfarçar como um fantasma, dentro das noites de Vila
Rica, avisando quanto à resolução do governo da província antes que ela
fosse tomada publicamente, com o fim de salvaguardar as posições sociais
de amigos do Visconde que haviam simpatizado com a nossa causa. Graças a
Deus, todavia, até hoje, sinto-me ditoso por ter subido sozinho os
vinte degraus do patíbulo.”
E os lábios do Herói da Inconfidência, como se receassem dizer toda a verdade, murmuraram estas frases soltas:
— “Sim… a Sala do Oratório e o vozerio dos
companheiros desesperados com a sentença de morte… a Praça da Lampadosa,
minha veneração pelo Crucifixo do Redentor e o remorso do carrasco… a
procissão da Irmandade da Misericórdia, os cavaleiros, até o derradeiro
impulso da corda fatal, arrastando-me para o abismo da morte…”
— “Não tenho coisa alguma a acrescentar às
descrições históricas, senão minha profunda repugnância pela hipocrisia
das convenções sociais de todos os tempos.”
— É verdade, acrescentei, reza a História que, no
instante da vossa morte, um religioso falou sobre o tema do Eclesiastes —
“Não atraiçoes o teu rei, nem mesmo por pensamentos.”
— Quanto ao Brasil atual, qual a vossa opinião a respeito?
— “Apenas a de que ainda não foi atingido o alvo
dos nossos sonhos. A nação ainda não foi realizada para criar-se uma
linha histórica, mantenedora da sua perfeita independência. Todavia, a
vitalidade de um povo reside na organização da sua economia e a economia
do Brasil está muito longe de ser realizada.
A ausência de um interesse
comum em favor do País, dá causa não mais à derrama dos impostos, mas
ao derrame das ambições, onde todos querem mandar, sem saberem dirigir a
si próprios.”
— Com relação aos ossos dos inconfidentes, vindos
agora da África para o antigo teatro da luta, hoje transformado em
Panteão Nacional, são de fato autênticos esqueletos dos apóstolos da liberdade?
— “Nesse particular, respondeu Tiradentes com uma
ponta de ironia, não devo manifestar os meus pensamentos. Os ossos
encontrados tanto podem ser de Gonzaga, como podem pertencer,
igualmente, ao mais miserável dos negros de Angola. O orgulho humano e
as vaidades patrióticas têm também os seus limites… Aliás, o que se faz
necessário é a compreensão dos sentimentos que nos moveram a
personalidade, impelindo-nos para o sacrifício e para a morte…”
Mas,
não pôde terminar. Arrebatado numa aluvião de abraços amigos e
carinhosos, retirou-se o grande patriota que o Brasil hoje festeja
glorificando o seu heroísmo e a sua doce humildade.
Aos meus ouvidos emocionados ecoavam as notas
derradeiras da música evocativa e dos fragmentos de orações que rodeavam
o monumento do Herói, afigurando-se-me que Vila Rica ressurgira, com os
seus coches dourados e os seus fidalgos, num dos dias gloriosos do
Triunfo Eucarístico mas, aos poucos, suas luzes se amorteceram no
silêncio da noite, e a velha cidade dos conspiradores entrou a dormir,
no tapete glorioso de suas recordações, o sono tranquilo dos seus sonhos
mortos.
(.Irmão X)
21 de abril de 1937.
Livro: Crônicas de Além Túmulo- Psicografado por Chico Xavier