Depois
de termos falado sobre a Justiça, pratiquemos um ato que a objetive.
Tenhamos a precisa coragem moral de, arrostando preconceitos, propugnar pela
reabilitação de um culpado, cujo delito, de há muito, foi
devidamente reparado, mediante a consumação da justiça
imanente, que reponta dos mesmos erros e delitos, como processo expurgador,
conducente à regeneração.
Queremos nos referir 'coram populo' a Judas Iscariotes, um dos doze apóstolos
do Senhor. Bem sabemos que esse nome tem sido execrado, atravessando os séculos
coberto de opróbrio e de ignomínia. Mas é precisamente
por isso que, em nome da justiça e, particularmente, em nome do Cordeiro
de Deus, que tira o pecado do mundo, ousamos empreender esta tarefa, para o
desempenho da qual imploramos o auxílio da luz que vem de cima.
Encaremos o crime de Judas com a devida calma, desapaixonadamente. Raciocinemos
e argumentemos com o critério que a gravidade do caso requer. Comecemos
levantando esta preliminar: Como foi Judas ter ao apostolado? Por solicitação
própria? Não. Foi chamado, conforme peremptória declaração
de Jesus, dirigida aos doze: Eu vos escolhi a vós; no entanto, um de
vós é demônio. Daqui ressalta outro ponto importante. Jesus
sabia que Judas ia cometer o ato delituoso ao qual se referiu por ocasião
da última páscoa, dizendo: Em verdade vos digo que um de vós
me há de trair.
E
eles, entristecendo-se muito, começaram cada um a perguntar-lhe: Serei
eu, Senhor? E Jesus retrucando, acrescentou: o que mete a mão no prato
comigo, esse me trairá. Judas, então, disse: Porventura sou eu,
Rabi? O Senhor retorquiu: — Tu o disseste. Em verdade, o Filho do homem
vai, como acerca dele está escrito, mas ai daquele por quem o Filho do
homem é traído! Bom seria a esse indivíduo, se não
houvera nascido. De posse destes dados, extraídos dos Evangelhos, portanto
dignos de fé, passemos à ordem dos argumentos.
Jesus veio à terra no desempenho de missão redentora. Para consumá-la
se fazia mister tornar-se conhecido dos homens, através de exemplos vivos
que testemunhassem o seu acrisolado amor pelos míseros pecadores, mostrando-lhes
a estrada da salvação e conduzindo por ela, como guia, toda a
humanidade. Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai
senão por mim.
As velhas profecias vaticinaram os acontecimentos que haviam de se desenrolar
no decurso da passagem do Filho de Deus por este orbe. Tudo estava previsto.
Jesus se achava perfeitamente enfronhado do que o esperava. Marchou, todavia,
resoluto e varonil ao encontro do sacrifício. Pai, afasta de mim este
cálice; todavia faça-se a tua vontade, e não a minha.
Iniciando a ingente tarefa, Jesus começa reunindo os que deviam colaborar
com Ele na obra da libertação humana. Chega-se a uns pescadores
e, sem mais preâmbulos, vai dizendo assim: Acompanhem-me, pois, doravante,
sereis pescadores de almas. E tais indivíduos, como que premidos por
mola invisível, deixam seus barcos, redes e demais petrechos do ofício
e seguem o Senhor. Da mesma forma, com relação a Mateus, portageiro
da alfândega, que, abandonando o emprego, se põe ao lado dos demais
escolhidos. Deste fato concluímos que aquelas pessoas tinham vindo a
este mundo já comissionadas, já designadas a desempenhar certas
incumbências junto ao Redentor da Humanidade. Do contrário é
inexplicával a facilidade com que todos anuíram ao chamado que
lhes foi dirigido por um homem desconhecido, com quem jamais haviam tido qualquer
entendimento, e que viram pela primeira vez.
O
compromisso, portanto, fora tomado antes, noutro plano da vida. Ora, Judas foi,
a seu turno, solicitado a acompanhar Jesus. Anuiu, como os demais, ao chamamento.
Veio, pois, a este mundo para fazer parte do ministério apostólico.
Nesse caso, acode-nos à mente a seguinte consideração:
se Judas ia fracassar desastrosamente, como fracassou, na qualidade de apóstolo;
se as profecias previram o acontecimento; se, finalmente, Jesus estava ciente
do desastre que esperava aquele discípulo, achando até que melhor
fora ele não ter nascido, isto é, não ter vindo ao mundo,
então por que o incluiu no apostolado? Não seria preferível
afastá-lo, na hipótese de haver partido dele o desejo de participar
da obra messiânica? Como, pois, se compreende ter sido ele chamado?
Não
será lícito estranharmos semelhante procedimento por parte daquele
que veio dar a vida pela redenção dos pecadores? Como, então,
contribuir para a perdição precisamente de um dos seus escolhidos?
Eis a questão que parece inextricável. Mas o Evangelho diz que
não há nada encoberto que não seja descoberto, e nada oculto
que não venha a ser revelado. Portanto, meditemos.
Jesus não podia consentir na perdição de Judas, ao incorporá-lo
no colégio apostólico, prevendo a sua ruína. Atribuir-se
ao Senhor semelhante cometimento seria rematada heresia. Há, portanto,
uma razão que o levou a agir como agiu. Para descobri-la temos que, preliminarmente,
estudar o caráter de Judas. Qualifiquemo-lo, tal como se faz aos réus.
Judas, além de ambicioso, amigo do dinheiro, sumamente egoísta,
era cínico. Este mal, quando empolga os Espíritos, os torna por
assim dizer impermeáveis à luz, à verdade e a todas as
sugestões e inspirações boas e salutares. Ficam impassíveis
às emoções e às influências de ordem moral.
Sua sensibilidade se embota, sua consciência se cauteriza, sua razão
se obnubila.
Mergulhados
na voragem da materialidade, só aspiram à satisfação
dos apetites, debaixo dos seus múltiplos aspectos. Acovardados fogem
das lutas, acocoram-se no comodismo, evitando tudo quanto possa perturbar-lhes
o antegozo dos seus desejos e dos seus pendores inconfessáveis. Ficam,
por assim dizer, cristalizados na esfera bastarda do sensualismo. E aí
permaneceriam eternamente se o 'surge et ambula' não constituísse
a lei soberana que rege o destino das criaturas de Deus. Sim, tal categoria
de indivíduos ficaria estacionária se pudesse furtar-se à
influência incoercível da evolução.
De
repente, surge um imprevisto que os atira para a correnteza das provas. Então,
como que arrastados pelas torrentes caudalosas de profundo rio, vão,
sacudidos pelas ondas, batendo-se contra os rochedos ásperos e arestosos
até que, precipitados no pélago das águas, ao rumor das
quais despertam para a realidade, abrem os olhos para a luz, acordam-se-lhe
a razão e a consciência, raiando a aurora de uma vida de reparação,
era das reabilitações.
Eis aí o que sucedeu a Judas. Era necessário que essa alma fosse
profundamente abalada, fosse sacudida até os seus fundamentos, suportasse
um tremendo choque, passasse por um verdadeiro cataclismo, para que despertasse.
Jesus não viu somente a queda de Iscariotes; viu
também a sua redenção, após a prática do
ato ignominoso. Por isso consentiu em incluí-lo no número
dos apóstolos. Foi dura, foi tremenda a sua expiação, porém
era esse o meio de chamá-lo à razão. Seu estado reclamava
um drástico enérgico. Esse medicamento lhe foi propinado.
Cumpriu-se a Justiça, de cuja consumação emerge a misericórdia
como seu complemento. Pela dor e pelo amor! Uma vez a lei satisfeita, soa a
hora da graça. Lei e graça, justiça
e misericórdia se entrelaçam na sábia urdidura da
obra redentora do Espírito. Prossigamos, no entanto, no esclarecimento
e justificação da nossa campanha em prol da reabilitação
do grande delinquente. Judas foi tentado. Jesus o afirma, dizendo que Satanás
o havia possuído. Se é certo que a influência da tentação
não dirime o delito, contudo é inegável que constitui atenuante
em favor do criminoso.
As
circunstâncias atenuantes estão previstas até nos códigos
terrenos, apesar das inúmeras lacunas de que eles se ressentem. A culpabilidade
de Iscariotes deve ser julgada através dessa circunstância. O Tentador
o dominou, agindo através dos dois principais defeitos do malsinado apóstolo:
cinismo e grande apego ao dinheiro. Essas duas falhas acentuadas do seu caráter
têm as suas raízes mergulhadas no egoísmo. Com dinheiro
se compram prazeres e deleites que gratificam os sentidos. Com cinismo o indivíduo
faz ouvidos de mercador aos protestos da consciência.
Que
Judas se fascinava pelo dinheiro, di-lo claramente João Evangelista,
reportando-se às suas ladroíces como tesoureiro da comunidade.
Que era um cínico e simulador atesta-o eloquente o seu gesto, na última
ceia, interrogando o Mestre sobre aquele que ia traí-lo metendo a mão
no prato com Jesus, após este haver declarado que tal importaria o sinal
denunciador daquele que o havia de trair. Os maus pendores facilitaram a tarefa
do traidor ou talvez, dos Espíritos das trevas.
Consideremos, agora, outras particularidades dignas de meditação.
A missão de Jesus não foi compreendida pelos homens do seu tempo,
inclusive pelos próprios discípulos e apóstolos. Estes,
só depois do dia de Pentecostes, é que a perceberam e assimilaram.
Todos viam no Enviado celeste o libertador do povo de Deus das garras de César.
Supunham que Jesus empregaria processos e meios miraculosos para vencer o despotismo
romano, expulsando os invasores da Palestina. Aguardavam ansiosamente esse momento.
A mente humana, acanhada e regionalista, não abarcava a grandiosidade
da obra messiânica. Ninguém pensava na libertação
do Espírito da servidão dos vícios e das paixões
com sede na carne. Esta questão era demasiadamente transcendental para
os homens daquele século.
Judas via em Jesus um místico, com poderes supranormais extraordinários,
aguardando o momento oportuno para utilizá-los em favor do seu povo oprimido.
Naturalmente, ao negociar com os sacerdotes judaicos a entrega de seu Mestre,
Judas supunha que Ele jamais pereceria às mãos dos seus inimigos.
Estaria, talvez, convencido de que, na ocasião azada, Jesus os destroçaria,
manejando faculdades que tanto o distiguiam, e que Judas tanto invejava. Vários
episódios teriam contribuído para alicerçar na mente do
grande culpado aquela hipótese.
Ele
presenciou o Senhor, quando os judeus tentaram aprisioná-lo. Estava habituado
a vê-lo aparecer inesperadamente entre os discípulos e ausentar-se,
sem que se soubesse para onde teria ido. No Jardim das Oliveiras, Jesus, apresentando-se
aos beleguins romanos guiados pelo mesmo Judas, se transfigura diante deles,
deixando irradiar a luz refulgente do seu Espírito. Diante deste fenômeno
insólito, a soldadesca, aturdida e confusa, cai por terra. Estas ocorrências
todas corroboraram o conceito de Iscariotes, animando-o a executar o plano que
arquitetara.
Quando,
porém, acompanhando com interesse a sucessão dos acontecimentos,
viu que Jesus caminha para o suplício, sem opor embargos aos seus verdugos,
e que, finalmente, sucumbiu no madeiro infamante. Judas estremeceu! Experimentou
dentro de si o rugir duma tormenta, o desabar de um medonho e inconcebível
furacão. O que se teria passado com ele, em tão trágico
lance, a linguagem humana não possui expressões bastante para
relatar. São desses transes que se imaginam, porém não
se descrevem. Perpassou-lhe pela mente o quadro da sua vida ao lado do Mestre.
Lembrou-se das palavras que ouvira dele; da sua bondade e doçura; da
sua dedicação pelos sofredores; dos benefícios que espalhou
por toda parte onde esteve; do caso da viúva de Naim cujo filho redivivo,
restituído a mãe, transformou o seu pranto em alegria; e daquele
filha voltar à vida, quando todos a consideravam morta; e, mais outro
ainda, o de Lázaro, cujas irmãs e amigos pranteavam a morte, ressuscitado
pelo Senhor e entregue ao afeto dos que o amavam. Essas maravilhas todas, de
alta benemerência, e tudo o mais que observara 'de visu', acompanhando
o Mestre em sua peregrinação terrena, se desenharam ao vivo no
delírio febril da sua imaginação.
Sabe-se pela experiência dos que se encontram em perigo iminente de morte
que nesses indivíduo se escoa em sua mente, que nestes instante, todo
o passado do indivíduo se escoa em sua mente de um modo vertiginoso,
porém perfeitamente compreensível. Todo o bem e todo o mal praticado,
as conjunturas alegres ou tristes, os atos dignos ou inconfessáveis,
tudo, enfim, num esforço rápido e vivo, é percebido e sentido
naqueles fugazes momentos. Foi o que se teria verificado com o grande pecador.
Sua alma então desperta; as cordas do seu sentimento habituadas à
inação vibram agora desusada e descompassadamente. Lavram em seu
interior as labaredas rubras do remorso. Sua razão, ora acordada, lhe
mostra a vileza e a monstruosidade do seu crime. Judas se contorce no paroxismo
da dor, no estertor horrendo da exprobração da consciência
revivida, no tormento dantesco do criminoso vergado ao peso da condenação!
Judas enlouquece, Judas suicida-se! Detenhamo-nos aqui. Não tentemos
avançar mais para dentro da sua dor, porque há dores cujo abismo
causa vertigem aos que delas se aproximam. Descubramo-nos diante da sua grande,
imensa e incomensurável tortura; deixemos que esta opere a sua obra de
purificação. Executou-se a lei. A lei que pontifica no interior
de cada homem, onde ele é juiz de si mesmo. Quanto tempo ficaria o espírito
do grande delinquente no estado de desespero em que partiu deste mundo? Não
sabemos. O importante é que ele se arrependeu. Deu, portanto, o primeiro
passo no caminho da reparação. Após a Justiça consumada,
soa, como já o dissemos, a hora da misericórdia.
À
lei sucede a graça, Judas é um regenerado. Para afirmá-lo,
nos baseamos na doutrina que nos foi revelada pela sua vítima. Jesus
estendeu, de há muito, a sua destra benfazeja, amparando e acolhendo
o apóstolo transviado. Perdoou-lhe, como perdoou a Pedro e a Paulo, que
também pecaram. Todos, depois de suportarem a consequência dos
erros praticados, se reabilitaram. Por que Judas não se teria reabilitado
também? — Reabilitou-se, sim, no-lo diz o mesmo Jesus, através
destes preceitos seus: Amai aos vosso inimigos. Fazei bem aos que vos fizerem
mal. Orai pelos que vos perseguem e caluniam. Perdoai e sereis perdoados. Não
julgueis, não condeneis. Com a medida com que medirdes, com essa sereis
medidos. Quem predicou assim não podia abandonar um pecador que deu visíveis
provas de contrição. Jesus é aquele cuja escola é
Ele mesmo, cujas teorias são os seus exemplos, cujas doutrinas são
a sua vida.
Portanto,
é Ele quem nos dá autoridade para propugnarmos no sentido de apagar
o estigma aviltante que envolve a memória de Judas. A gravidade da culpa
depende da previsibilidade do evento criminoso. Ora, Judas não teve a
previsão das consequências do delito que praticou. Só depois
de consumado é que ele mediu o seus efeitos. Não cabe na mente
do egoísta que alguém, dispondo de força excepcionais e
singulares, deixe de utilizá-las em defesa própria. Renúncia
e sacrifício são expressões que carecem de sentido para
as mentalidades imbuídas do egoísmo.
Demais, cumpre acentuar ainda uma particularidade muito curiosa no ato pecaminoso
de Iscariotes. O seu crime não foi propriamente de traição.
Falta circunstância para que se capitule naquela rubrica: a circunstância
da surpresa da vítima. Não pode haver traição, sem
que se verifique o sobressalto, o inopinado, o imprevisto. Ora, Jesus, a vítima,
estava a par de tudo, vinha acompanhando os passos de seu discípulo,
ciente de toda a trama que ele urdira. Onde, pois, a traição?
É verdade que este pormenor não altera, do ponto de vista moral,
a natureza do delito ora em apreço. Seja, porém, como for, o fato
é que Judas resgatou a sua grande culpa no cadinho de uma imensa dor.
As 30 moedas, preço de sua perfídia, ali fundidas, caíram,
gota a gota, em seu atribulado coração.
Lembremos por fim, que Jesus veio chamar os pecadores e não os justos.
Por isso jamais se defendeu das injúrias e ataques dirigidos à
sua pessoa. Contra outra espécie de traidores, ele se insurgiu: os traficantes
da fé, os impostores que exploravam o alheio sentimento. A este exprobrou
em termos enérgicos. Seu gesto de revolta se verificou, quando expulsava
do templo os vendilhões, dirigindo-lhes a seguinte apóstrofe:
Fizestes da casa de meu Pai, que é casa de oração, covil
de salteadores. Para os algozes que o cravaram na cruz, assim como para a plebe
ignara que, aparvalhada, assistia ao seu sacrifício, teve esta frase
lapidar: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.
Os
pecadores confessos e contritos encontraram nele refúgio, consolo e salvação.
Duas almas tiveram a primazia na obra de redenção consumada no
Calvário: a primeira foi Dimas, o bom ladrão crucificado à
direita do Cristo de Deus; a segunda foi Judas, o suicida, na demência
do remorso.
Vinícius