O problema da disciplina no Centro Espírita é dos mais
melindrosos e deve ser encarado entre as coordenadas da ordem e da tolerância.
Não se pode estabelecer e manter no Centro uma disciplina rígida, de tipo
militar. O Centro é, além de tudo o que já vimos, um instrumento coordenador
das atividades espirituais. No esquema das suas sessões teóricas e práticas a
questão do horário é imperiosa, mas não deve sobrepor-se às exigência do amor
fraterno. Não é justo deixarmos fora da sessão companheiros dedicados ou necessitados,
porque chegaram dois ou três minutos atrasados. Vivemos num mundo material e
não espiritual, em que as pessoas lutam com dificuldades várias no tocante à
locomoção, de compromissos diversos, e é justo que se dê uma pequena margem de
tolerância no horário. Essa margem não deve também ser estabelecida com rigor,
mas deixada ao critério do dirigente dos trabalhos, que saberá dosar as coisas
de acordo com as conveniências. O rigor exagerado na questão de horário,
mormente nas cidades mais populosas, causa aborrecimentos e mágoas a pessoas
sensíveis que, depois de aflição e correria para chegar na hora certa, viram-se
impedidas de participar da reunião por alguns segundos ou minutos.
Temperando-se as exigências da ordem cronológica com o dever da atenção aos
companheiros podemos evitar aborrecimentos perfeitamente superáveis. Claro que
esse é um problema a ser sempre esclarecido nas reuniões, para que todos possam
ter conhecimento da flexibilidade possível no horário. O simples fato de haver
essa flexibilidade, já tira à disciplina o seu aspecto opressivo.
Essa mesma dosagem de ordem e tolerância deve ser
aplicada a outros problemas, de maneira a assegurar-se, o mais possível, um
ambiente geral sem prevenções, que muito ajudará na realização dos trabalhos.
Tratamos das almas frágeis no capítulo anterior.
Devemos agora tratar das almas fortes, as mais apegadas ao problema disciplinar.
As almas fortes são aquelas que procedem de linhas evolutivas em que os
espíritos se aperfeiçoam no uso da independência e da coragem. Por isso mesmo
trazem consigo um condicionamento disciplinar que não aceita facilmente as
concessões a que aludimos. Uma palavra rude de uma alma forte, embora não intencional,
pode ferir a susceptibilidade de uma alma frágil, prejudicando-a no seu
equilíbrio por uma insignificância. Ora, segundo a regra geral das relações humanas,
o forte deve proteger e amparar o fraco, para ajudá-lo a se fortalecer. Os
dirigentes de trabalhos devem cuidar de evitar esses pequenos atritos que não
raro têm conseqüências muitas maiores do que se pensa. Por outro lado, as almas
fortes precisam controlar os seus impulsos pelo pedido consciencial da
fraternidade. Há pessoas que, por se sentirem mais fortes, decisivas e poderosas
que as outras, embriagam-se com a ilusão do poder, desrespeitando os direitos
alheios e sobrepondo-se, com rompança às opiniões dos outros. Atitudes dessa
natureza, no meio espírita e no Centro, causam má impressão e constrangimento
no ambiente, fomentando malquerenças desnecessárias. Em se tratando de
Espiritismo, tudo se deve fazer para manter-se um ambiente de compreensão e
fraternidade, sem exageros, tocado o possível de alegria e camaradagem. Num
ambiente assim arejado, desprovido de tensões, a espiritualidade flui com
facilidade e os Espíritos orientadores encontram mais oportunidade de tocar os
corações e iluminar as mentes.
Por menor que seja, o Centro dispõe sempre de mais de
um setor de atividades. Deve-se fazer o possível para que em todos eles reine
um ambiente fraterno, que é o mais poderoso antídoto dos desentendimentos. A
disciplina desses trabalhos, mesmo quando exija maior severidade, como no caso
das sessões de desobsessão, deve ser tocada pela boa vontade e a compreensão
fraterna. Sem isso, particularmente em se tratando de desobsessão, dificilmente
conseguiríamos resultados satisfatórios. Mas a franqueza também é elemento
importante na boa solução dos problemas. Quando necessário, o dirigente deve
chamar o obsedado em particular e expor-lhe com clareza o que observou a seu
respeito, aconselhando-o a mudar de comportamento para poder melhorar. A
verdade deve estar presente em todos os momentos das atividades espirituais,
mas a verdade nunca pode ser agressiva, sob pena de produzir o contrário do que
se deseja.
Não queremos esmiuçar todos os problemas e todas as
situações no funcionamento de um Centro, pois isso seria cansativo e
desnecessário. Tocamos apenas em alguns pontos para abrir diretrizes
aproveitáveis, segundo a experiência de longos anos nas lides doutrinárias.
Outros, com mais capacidade e mais penetração, poderão completar o nosso trabalho
com suas contribuições. Nosso desejo é apenas ajudar os companheiros que tantas
vezes se aturdem com as dificuldades encontradas. Não propomos regras como
possível autoridade, que não somos e ninguém o é, num campo de experiências em
que quanto mais se aprofunda mais se tem a aprender.
A disciplina de um Centro Espírita é principalmente
moral e espiritual, abrangendo todos os seus aspectos, mas tendo por constante
e invariável a orientação e a pureza de intenções. Os que mais contribuem para
o Centro são os que trabalham, freqüentam, estudam e procuram seguir um roteiro
de fidelidade à codificação Kardeciana. Muito estardalhaço, propaganda, agitação
só pode prejudicar as atividades básicas e essenciais do Centro, humanitárias e
espirituais, portanto recatadas e silenciosas. Os problemas do Centro são de
ordem profunda no campo do espírito. Mas apesar disso não se pode desprezar as
oportunidades de divulgação e principalmente de orientação doutrinária para o
povo em geral. Não precisamos de aumentar forçadamente os nossos grupos, somos
contrário ao proselitismo, sabemos que nem todos podem aceitar os nossos
princípios, mas sabemos também que a Verdade deve sempre ser posta ao alcance
de todos. Quem quiser encontrá-la não precisará procurar lugares especiais,
deve encontrá-la em qualquer parte em que um jornal, um programa de rádio, um
livro, um folheto estiver ao seu alcance. Não convertemos nem devemos tentar
converter ninguém, pois, como ensinava Kardec, nem todos estão em condições de
afinar-se espiritualmente na compreensão dos problemas novos que o Espiritismo
apresenta ao mundo em renovação. Mas aqueles que amadureceram na idade
espiritual serão úteis na batalha para o amadurecimento de outros.
A disciplina autoritária e rígida teve a sua função na
disciplinação dos povos bárbaros após a queda do Império Romano. Essa coerção
prosseguiu pelo tempos sombrios do Medievalismo. Mas a Era da Razão que surgiu
da noite medieval, reivindicou os direitos individuais do homem, na linha
ateniense do esclarecimento cultural. O domínio natural da Igreja esgotou-se
nos albores do Renascimento, mas o domínio artificial, fundado nos poderes
políticos e econômico-financeiros da organização clerical estenderam-se aos
tempos modernos e ainda se exerce, embora enfraquecido e estropiado, no mundo
contemporâneo, em pleno alvorecer da Era Cósmica. Essa anomalia histórica, nos
entrechoques contraditórios da fase de transição, resolve-se aos nossos olhos
num desvio violento provocado pelas forças conjugadas dos interesses em jogo,
voltando-se para a tradição de Esparta. A força e a violência se sobrepuseram
aos ideais atenienses e o indivíduo esmagado pelo peso das massas acarneiradas
refugiou-se na servidão medieval, nas oposições inócuas e na revolta do desespero
insensato. As leis históricas seguem o seu curso regular, mas quando as
acumulações dos fatores a-históricos, como os lastros esmagadores dos instintos
primitivos, acumulados nos socavões do inconsciente coletivo, as obrigam a sair
dos canais naturais, elas se desviam à procura dos pontos de retorno. A volta a
Esparta, que marcou a fase instintiva das explosões totalitárias, mergulhou o
mundo no delírio do arbítrio e da violência. Um terremoto a-histórico rompeu o
chão em que florescia a Belle-Epoque, a fase lírica e romântica que Stephan
Zweig descreveu em “O mundo que Eu Vi”, precipitando no abismo todos os valores
culturais e humanistas dos séculos XVIII e XIX. O próprio Zweig imolou-se, a
seguir, no desespero do suicídio. Os abismos da Terra lacerada impediram-nos o
acesso a Atenas. Mas restou uma passagem secreta, uma ponte sobre o abismo,
sustentada pelas rochas inabaláveis do Evangelho, orientada pelos sinaleiros
subjetivos dos arquétipos de Jung nos rumos da transcendência. Essa ponte era a
do novo Renascimento do homem e do mundo pelas mãos do Cristo. Era o
Espiritismo, que das ruínas da catástrofe histórica fazia ressurgir, ainda cambaleante,
a figura fantasmal de Lázaro.
O Mundo Contemporâneo é Lázaro redivivo, ainda envolto
em mortalha, com a boca amarrada, os braços e os pés atados, mas atendendo ao
chamado do Cristo para reintegrar-se no processo histórico interrompido. Marta
e Maria o restabelecem na paz de Betânia, cercada pelas guerras furiosas e as
atrocidades produzidas na Terra, no Céu e no Mar pela inconformação e a revolta
dos homens. Nessa hora trágica, dantesca (não apenas na imagem do Inferno de
Dante, mas na sua própria essência real) a consciência humana desperta para a
busca de si mesma. O Centro Espírita, na sua singeleza, na sua humildade e na
sua pobreza – pequenina semente que os abismos ameaçam tragar – sustenta a
chama da esperança cristã-humanista e trabalha em silêncio na restauração da
Verdade. Solitário, desprezado pela ignorância arrogante é o Centro – o ponto
ótico ou visual para o qual convergem todas as possibilidades da Ressurreição
do Planeta assassinado. Temos necessidade urgente de compreender esse momento
histórico, decifrar os seus signos para que a Esfinge não nos devore. A rotina
dos trabalhos do Centro, a monotonia das doutrinações exaustivas, a repetição
dos ensinos que chegam a parecer inúteis, a insistência das obsessões
agressivas, a inquietação dos que se afastam em busca do socorro ilusório de
ciências psíquicas ainda informes e retornam desiludidos e cansados – todo esse
ritornelo atordoante pode desanimar os que lutam contra a voragem das trevas.
Mas é preciso resistir e continuar, é necessário enfrentar a ignorância
petulante dos sábios que ainda não aprenderam a lição socrática da humilde
intelectual, do sábio que só é sábio quando sabe que nada sabe.
A hora espírita do Mundo é de agonia e desespero. Mas
foi agonizando na cruz, injustiçado pelos sábios do seu tempo, que Jesus nos
ensinou a lição da ressurreição e da imortalidade espiritual. O Centro Espírita
é a cruz da paciência que Jesus nos deixou como herança do seu martírio. Ele
nos livra da cruz que o Mestre enfrentou entre ladrões, salvando, morrendo com
eles para salvá-los – um através da conformação difícil da dor, outro através
da revolta e da indignação que levam ao arrependimento e à reparação.
Por isso a disciplina do Centro não pode ser a dos
homens, mas a dos anjos que servem ao Senhor tatalando no Céu as asas
simbólicas da Esperança. Deixemos de lado a disciplina exigente, para podermos
manter no Centro a disciplina do amor e da tolerância. Não lidamos com soldados
e guerreiros, mas com doentes da alma. Nossa disciplina não deve ser exógena,
imposta de fora pela violência, mas a do coração. Tem de ser a disciplina endógena,
que nasce da consciência lentamente esclarecida aos chamados de Deus em nossa
acústica da alma.
A evolução humana se processa no concreto em direção ao
abstrato, o que vale dizer da matéria para o espírito ou do corpo para a alma.
Na linguagem platônica diríamos: do sensível para o inteligível. Na Era Cósmica
que se inicia com as façanhas da Astronáutica essa evolução se define em termos
de ciência e tecnologia. O homem das cavernas saiu de sua toca de bicho para
dominar a Terra, edificar casas, palácios e torres, templos que apontam para as
estrelas, e agora, depois de se librar na atmosfera com asas e hélices,
projeta-se além da estratosfera, mergulha no Cosmos, pousa na Lua e regressa à
Terra, servindo-se de propulsores terrenos e das forças da gravidade, como se
tivesse nascido nos espaços siderais e não do barro do planeta.
Quem não vê nesse esquema gigantesco e dinâmico o
roteiro da evolução humana? De outro lado, rompemos os véus misteriosos de Isis
nas pesquisas da Física, em que a matéria nos revela as estruturas atômicas da
realidade aparentemente compacta e opaca, que se mostra fluída e transparente,
e nas pesquisa psíquicas descobrimos que a nossa natureza não é concreta, mas
abstrata, pois não somos corpos, mas espíritos.
Sobre os escombros do passado em ruínas, das civilizações
mortas, das certeza materiais e sólidas transformadas em pó e ante a ameaça dos
cogumelos atômicos desintegrantes, vemos de maneira inegável que a essência de
toda a realidade tangível é na verdade intangível. Reconhecemos os enganos
produzidos pela ilusão dos sentidos materiais em nosso senso abstrato e somos
obrigados a compreender que malbaratamos o tempo nas encarnações desvairadas.
As fachadas suntuosas das catedrais, os gigantescos edifícios das Instituições
cientificas, os Edifícios do Saber em todos os campos – todo esse acervo de
grandiosidade efêmera se reduz a esboços de uma verdade simples que se escondia
por milênios na humildade de um casebre de arrabalde ou de uma choupana da roça
– o Centro Espírita. Só ali encontramos, entre criaturas anônimas, na intuição
dos simples, a Verdade que buscávamos. Assim também aconteceu nas grandes
civilizações do passado, que renegaram os ensinos de um carpinteiro galileu. Na
penumbra do Centro Espírita, suspeita para os sábios e os poderosos, Deus escondera
a chave do mistério.
Livro: O Centro Espírita
Herculano Pires
Livro: O Centro Espírita
Herculano Pires
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