As dimensões da educação
Artigo extraído do livro "Pedagogia Espírita" - 1ª Edição - Maio de 1985 - Editora Cultural Espírita Ltda - EDICEL.
A
educação só se tornou problemática nos momentos em que se desligou da
religião. Isso é visível nos momentos históricos de desligamento
parcial, como no mundo clássico, particularmente no apogeu da
civilização grega, e na fase de emancipação total que começa no
Renascimento e vai encontrar seu ponto culminante em Rousseau. Enquanto
as religiões incorporaram, em suas estruturas gerais, o conceito de
educação como salvação e a prática educativa como catequese, não havia
problema. Quando, porém, o pensamento crítico se desenvolveu, a ponto de
atingir a própria substância da fé, retirando ao homem a base ingênua
de certezas tradicionais em que ele se sentia seguro dentro do mundo,
tornou-se evidente a necessidade de criação de sistemas educacionais
autônomos e surgiu a problemática da educação.
O episódio dos sofistas, seguido dos esforços de Sócrates, Platão e
Aristóteles, é bastante elucidativo desse fato. A transformação da
estrutura estática do antigo estado grego na estrutura dinâmica do
imperialismo de Péricles, como esclarece Jaeger, exige a “racionalização
da educação política”, como “um caso particular da racionalização de
toda a vida grega, que mais do que nunca se funda na ação e no êxito”. A
educação supera os seus estágios familial e épico, ambos dominados pela
concepção mítico-religiosa, para adquirir uma nova dimensão: a cívica
ou política. Esse problema da “ação e do êxito” é também examinado por
Marrou, que nos oferece um estudo do mecanismo de transição da educação
épica para a técnica, na “passagem progressiva de uma cultura de nobres
guerreiros para uma cultura de escribas”.
A reincorporação da educação à estrutura religiosa, que se verifica na
Idade Média, não representa um retrocesso, porque se realiza num plano
de enriquecimento conceptual. Quer dizer: a educação medieval, conquanto
dominada pela concepção religiosa e submetida ao controle eclesiástico,
já se processa numa perspectiva racional. As contribuições do
racionalismo grego, do pensamento jurídico romano e do providencialismo
cristão misturam-se nessa perspectiva, em que se elabora, desde o
declínio do Império, essa fusão conceptual que, segundo Dilthey, “aflui
como metafísica para os povos modernos”. A homogeneidade do pensamento
medieval não era mais do que o resultado de um lento processo de
caldeamento em que a educação também se caldeava em novas possibilidades
formais. O processo histórico não se interrompe, mas prossegue, não
mais em extensão, mas em profundidade, como assimilação. E na medida em
que vão surgindo, nas linhas sucessivas desse processo, as dimensões
espirituais do homem, a educação naturalmente se desenvolve em
perspectivas dimensionais.
Esta possibilidade de encararmos a educação num plano de
desenvolvimento progressivo, não apenas histórico, mas, sobretudo
historicista, parece-nos bastante fecunda para melhor compreensão do
problema educacional. A partir da educação primitiva, como simples forma
de integração, passamos às formas religiosa e cívica, como processos de
domesticação, para atingirmos os conceitos clássico e moderno de
formação cultural em que as condições de imanência social são finalmente
rompidas pelo impulso da transcendência espiritual. Encontramos assim
uma dialética da educação que nos permite o processo educativo de
maneira dinâmica, acima dos traçados rígidos da História como
conseqüência de fases e das condições deterministas bio-psico-sociais.
Essa dialética talvez nos forneça os meios de que necessitamos, com
tanta urgência, para superarmos o impasse em que se encontra o problema
da educação em nossos dias, no entrechoque de tantas teorias
contraditórias. Se pudermos encarar a educação como um processo de
desenvolvimento dimensional da cultura, não como substituição de fases
históricas condicionadas pelo tempo, mas de um processo que se serve do
tempo, estaremos mais próximos de uma visão global do problema.
Parece-nos, pelo menos, que dessa maneira poderemos superar a
representação esquemática, fragmentária que hoje possuímos do processo,
gerando posições diversas e contraditórias na sua enfocação teórica,
para encontrarmos as linhas gerais de uma verdadeira Filosofia da
Educação.
As dimensões do homem
É evidente que as dimensões da educação decorrem das dimensões do
homem. Se o homem pode ser encarado, tanto espiritual como socialmente,
numa perspectiva de sucessões dimensionais, então o processo educativo
também será susceptível dessa visualização. E é precisamente numa teoria
dimensional do homem que vamos buscar as possibilidades de uma
formulação teórica da educação nesse sentido. Formulação, aliás, que
pode levar-nos a maiores possibilidades metodológicas na colocação
filosófica do processo educacional.
Apesar de termos nos referido a História e a historicistas, não é num
historicista que vamos encontrar a teoria, mas no existencialista Jean
Sartre com seu famoso ensaio de ontologia fenomenológica. Tanto melhor,
pois esse simples fato reforça a nossa referência às possibilidades de
transcendência do processo educacional. Embora Sartre tenha encontrado a
transcendência em termos fenomenológicos no plano social, a sua teoria
nos leva, por um impulso dialético, a superar a polaridade
ontológico-social da educação. E essa superação vai nos fazer sentir as
suas possibilidades num ensaio de Denis de Rougemont sobre o
desenvolvimento das dimensões humanas na civilização ocidental. É nesse
ensaio que podemos avaliar a fecundidade da aplicação da teoria
dimensional aos processos sociais
O homem é apresentado por Sartre, em L’être et lê Néant, na sua
conhecida formulação dialética: uma forma rígida ou fechada, len-soi,
primeira dimensão do ser, que se nega a si mesma na especificidade
humana, atingindo em le pour soi a segunda dimensão, da qual resulta
necessariamente a terceira dimensão de l’être pour autrui, na relação
social. Essa formulação se repete no capítulo sobre a terceira dimensão
ontológica do corpo da seguinte maneira: antes de tudo, o corpo existe, e
este existir é a sua primeira dimensão; depois, o corpo entra em
relação com os outros, e nesta relação surge a sua segunda dimensão; por
fim, no conhecimento do corpo pelos outros tem ele a sua terceira
dimensão. (“J’existe pour moi comme connusion ontologique de mon
corps”.)
Em Denis de Rougemont essa dialética das dimensões adquire maior
densidade ontológica, passando do plano da fenomenologia para o da
metafísica. Apresenta-se, porém, numa perspectiva fideísta. A
transcendência do ser, que é a sua terceira dimensão, equivale a um
duplo processo de relações: no plano social como amor do próximo, e no
metafísico como amor de Deus. Essas dimensões se tornam mais claras numa
enfocação histórico-cultural: a primeira dimensão é a do horizonte
tribal, que o autor define servindo-se da teoria do corpo mágico ou
corpo-sagrado do ensaísta austríaco Rudolf Kessner, e em que o homem
primitivo aparece como simples parcela de um todo fechado sobre si
mesmo; a segunda dimensão é a do horizonte civilizado em que surge o
indivíduo urbano que se torna cidadão. A terceira dimensão é a do
transcendente em que o homem se torna cristão, integrando-se nos
princípios espirituais da civilização. Esse particularismo de Rougemont
equivale, entretanto, ao conceito universal da transcendência pela
cultura, que encontramos no horizonte profético de John Murphy em seus
estudos sobre as Origens e a História das Religiões.
Vemos, assim, que as limitações daquilo que chamamos perspectiva
fideísta, no ensaio de Rougemont, não diminuem a importância de sua
tentativa de aplicação da teoria das dimensões humanas num plano mais
fecundo que o da ontologia fenomenológica de Sartre. Vejamos de que
maneira Rougemont esquematiza a sua teoria das dimensões do espírito
ocidental, que se eleva à terceira dimensão pelo impacto de uma religião
oriental. É curiosa essa aplicação sectária da teoria das dimensões,
que servindo-se de elementos orientais, faz surgir no ocidente, no
fenômeno da pessoa, o homem tridimensional, ao mesmo tempo que nega aos
orientais essa possibilidade.
É o seguinte o esquema apresentado pelo próprio Denis de Rougemont: “Se
o homem do clã, da tribo ou da casta, só tinha uma dimensão real: sua
relação com o corpo sagrado; se a segunda dimensão, inventada pelos
gregos, é a que reúne o indivíduo e seu modo de relações, a cidade; São
Paulo definiu a terceira dimensão: a relação dialética com o
transcendente, religando o indivíduo como vocação divina à comunidade,
como amor do próximo. Esse homem, melhor liberado que o indivíduo grego,
melhor entrosado que o cidadão romano, mais livre pela fé mesma que o
entrosa, é o arquétipo do Ocidente que nasce, é a pessoa”.
Murphy, porém, ao tratar do horizonte-profético como uma conseqüência
universal do desenvolvimento do horizonte civilizado, acentua o
aparecimento “das condições novas que tornaram possível o advento de
grandes individualidades, profetas, filósofos, instrutores éticos e
religiosos, desde cerca de dois mil anos antes da nossa era”. Situando o
período desse desenvolvimento entre o XI e o III séculos antes de
Cristo, e limitando-o geograficamente à região compreendida entre a
Grécia e o Egito, passando pela Palestina e a Mesopotâmia, até a índia e
a China, demonstra historicamente o aparecimento da pessoa, equivalente
à terceira dimensão de Rougemont, muito antes do advento do
Cristianismo. Anulamos, assim, o exagero fideísta de Rougemont, como
esse mesmo exagero anulou o negativismo existencial de Sartre, que
limitava a terceira dimensão ao plano das relações sociais. E assim, por
um processo dialético, temos a pureza conceptual da teoria das
dimensões humanas, capazes de nos servir, sem qualquer limitação
sectarista, para uma possível tentativa de elaboração metodológica,
visando à mais ampla e mais profunda enfocação filosófica do problema da
educação.
A validade da teoria dimensional do espírito parece-nos pelo menos bem
sustentada nas formulações de Dilthey, Sartre e Rougemont. Claro que ela
se funda, para o primeiro e o último, nos pressupostos da evolução
histórica, e para o segundo, na problemática do ser. Temos assim, na sua
base, a polaridade ontológica-social, com todas as implicações que vão
de um pólo a outro. Convém lembrar, como demonstra Jean Vahl, que as
raízes da teoria dimensional, por assim dizer, se aprofundam no passado
filosófico. De qualquer maneira, o que nos interessa é a possibilidade
de sua aplicação metodológica. Essa possibilidade parece fecunda
principalmente por oferecer à Filosofia da Educação perspectivas
filosóficas para a solução dos seus problemas até agora frustrados, em
grande parte, pela falta dessas perspectivas.
Educação e Filosofia
A inquietação atual do pensamento pedagógico, à procura de uma
Filosofia da Educação que realmente corresponda às exigências do mundo
em transformação, resulta não só do fato mesmo dessa transformação, como
também da falta de unidade, ou pelo menos de uma confluência de vistas a
respeito dos problemas a serem postos em equação. Quando, em 1941, a
National Society for the Study of Education, dos Estados Unidos,
resolveu dedicar um dos seus anuários ao problema da Filosofia da
Educação, essa falta de unidade fundamental se tornou bem patente. Na
introdução que escreveu para o anuário, publicado em 1942, o Prof. John
Brubacher, da Universidade de Yale, esclarece que o intuito da Natinal
Society era conseguir que “as diversas filosofias se dirigissem de
maneira clara e inequívoca, aos pontos importantes de seus desacordos”.
Entretanto, os colaboradores convidados, representantes das várias
escolas atuais de Filosofia, e particularmente de Filosofia da Educação,
não puderam atender a esse apelo.
No decorrer destes últimos anos muitos esforços foram desenvolvidos no
sentido da superação desse estado de coisas. Mas a superação não era
fácil, pois os desacordos eram ainda mais profundos, como podemos ver
neste trecho do prefácio de Brubacher: “Afortunada ou desgraçadamente,
esse plano não foi adotado porque no Comitê da obra, não somente se pode
chegar a um acordo com referência aos problemas que seriam
selecionados, como nem mesmo foi possível uma coincidência a respeito do
que constitui um problema na Filosofia da Educação. Em conseqüência
decidiu-se permitir a cada colaborador a exposição do seu sistema de
Filosofia da Educação na forma que lhe parecesse mais adequada”.
Mortimer Adler, que colaborou no anuário escrevendo uma defesa da
Filosofia da Educação, pôs em relevo a necessidade de uma definição do
seu objeto como solução dos desacordos existentes. Lamentou a posição
individual e irredutível de vários filósofos que só tinham a expor “a
sua opinião, o seu ponto de vista sobre educação, ou o seu sistema de
filosofia”, e acentuou a urgência de se afastarem de cogitação os
elementos que, não sendo filosóficos, sobrecarregam as escolas atuais de
Filosofia da Educação. Dez anos depois, ao publicar o seu Traité de
Pedagogie Generale, na França, René Hubert denunciava essa mesma
situação e procurava lançar as bases realmente filosóficas de uma
Filosofia da Educação.
O problema se torna claro nestas palavras de Paul Desjardins, que
Hubert reproduz no prefácio da sua obra: “Os reformadores da educação,
que temos observado, descobriram a verdade em quase todas as questões de
detalhe: este, sobre a educação dos sentidos e sobre o processo do
juízo na primeira infância; aquele, sobre a aplicação do trabalho
manual; um, sobre a ginástica racional; outro, sobre a maneira de
ensinar idiomas, ou a Física, ou o Desenho, ou a Música vocal, etc;
descobrimentos contemporâneos e diversos, cujo centro, se refletimos a
respeito, aparece como único; entretanto, este centro, de que tudo
parte, não está assinalado com suficiente ênfase em nenhum lugar, e isso
é o que falta determinar numa escola pensada à francesa”. Hubert
comenta: “Porque este centro é o homem, e o mestre cuja memória acabamos
de evocar teria sem dúvida acrescentado conosco que escola pensada à
francesa é a que se dedica a ensinar e fazer nascer o Homem”.
É curioso que tenhamos encontrado, no próprio pensamento francês
contemporâneo, as sugestões para uma resposta ao reclamo de Desjardins. A
escola pensada à francesa, que põe a sua ênfase no objeto e centro da
educação, o homem, só poderá aparecer, no campo vasto e contraditório da
Filosofia da Educação, com base num esforço metodológico essencialmente
humanista. A sugestão do esquema sartreano das dimensões do espírito
parece-nos abrir amplas possibilidades nesse sentido. Da mesma maneira
porque no estudo das religiões a aplicação do método dos horizontes
culturais alargou a compreensão do problema, podemos esperar que um
método dimensional permita o reajuste necessário do problema filosófico
da educação.
Um método integral
Poderíamos aspirar a um método integral que, aplicado à história da
Educação e a toda à problemática educacional, nos possibilitasse a
investigação de todos os seus aspectos, ou que pelo menos nos desse, no
plano da interpretação, uma visão geral e dinâmica do processo
educativo? Os métodos históricos, comparativos e culturais não chegam a
tanto. O método dos horizontes culturais oferece perspectiva mesológica
em extensão, mas falta-lhe a profundidade ontológica que é procurada na
complementação de pesquisas psicológicas. Entretanto a Psicologia é um
particularismo, uma especialização, como a Sociologia. Suas pesquisas se
referem a problemas particulares de estrutura e função, como as
sociológicas aos problemas de relação. A Filosofia da Educação, porém,
abrange todo o contexto de ações e reações objetivas e subjetivas que
vai do ser como ser ao social e como cultura. A Filosofia da Educação
extravasa, assim, da extensão de sua própria polaridade no momento em
que transcende o social para penetrar no cultural, no pleno domínio do
espírito. É o que estuda Hubert, com admirável clareza e segurança, no
seu tratado.
É possível que estejamos exagerando as possibilidades do método
dimensional e só os especialistas em metodologia poderão responder até
onde as nossas esperanças são viáveis. O Prof. Cannabrava, que se
destaca no estudo dos problemas metodológicos entre nós, procurou
solucionar a diversidade dos conceitos de verdade empírica e verdade
formal através do objetivismo-crítico, propondo o método único da
síntese-reflexiva. “A Filosofia elaborou um método – declara – que
permite conjugar a análise da estrutura lógica do conhecimento com a
interpretação sintético-funcional dos processos empíricos que se
relacionam diretamente com a atividade cognitiva”. A mesma unidade no
tocante aos problemas gerais da Filosofia da Educação, em sua relação
específica com o objeto do problema educacional, não poderá ser tentada?
Investigar as possibilidades metodológicas da teoria das dimensões
humanas parece-nos, pois, tarefa das mais promissoras. Partindo da
análise do corpo-mágico, da feliz formulação de Kessner, onde o homem se
apresenta na sua primeira dimensão, um método dimensional nos levaria
ao exame de todas as implicações da passagem para a segunda dimensão e
desta para a terceira. Esse método global ou integral penetraria, assim,
em todas as estruturas e conexões da polaridade pedagógica, abrangendo a
simultaneidade do ser como ser – existindo em si, agindo no para-si e
se transcendendo no cultural – do bio-pisiquismo em sua dinâmica
funcional e do social em sua dinâmica de relações. Para essa penetração
simultânea o método deveria dispor das técnicas específicas necessárias,
subordinadas sempre ao contexto dimensional. Essa solução, se possível,
livraria a Filosofia da Educação das contradições atuais, eliminando o
atomismo das teorizações pessoais que tanto se apóiam em métodos
filosóficos quanto em métodos científicos ou simples técnicas de
pesquisa.
Esta busca da unidade pode parecer um desejo de volta, em termos
psicanalíticos, à homogeneidade religiosa a que nos referimos no início.
A educação, à maneira do Positivismo comteano, encontraria assim um
meio de negar a sua natureza problemática para adormecer de novo no seio
das certezas tradicionais. Mas o exemplo medieval a que já aludimos
bastaria para mostrar-nos a irreversibilidade do processo evolutivo.
Assim como na Idade Média o império religioso desenvolveu-se em plano
racional e crítico, elaborando a autonomia mais completa do pensamento
que eclodiria na Renascença, assim também a volta à unidade, no
presente, não seria um simples retrocesso, mas um reajuste dialético.
Poderíamos apelar para o princípio marxista da negação para explicar
este aspecto do problema.
Não resta dúvida que a unidade metodológica é uma tentativa de
superação de problemas, mas não de anulação da natureza problemática do
processo educativo, o que seria impossível. Essa busca, como já vimos,
existe na Filosofia Geral, como existia nas Ciências. Busca-se não
apenas a unidade metodológica nesses dois campos, mas também a unidade
conceptual, como vemos na obra de Einstein. E se o objetivo do
conhecimento é a reconstrução do Universo pela síntese após a análise,
essa busca não é a conseqüência de um complexo inconsciente, mas um
imperativo do próprio desenvolvimento cultural.
No caso da educação, superar a situação conflitiva do presente para
encontrar um plano de unidade equivalerá realmente a reconstruir a
homogeneidade religiosa, porque o destino do homem, segundo Hubert,
“consiste em ser espírito”, e o fim da educação, segundo Kerchensteiner,
é “a criação de um ser espiritual”. Entretanto, não se trata da
colocação do problema nos termos da antiga metafísica religiosa e sim
nos da moderna ontologia. O espírito, nessa nova homogeneidade
religiosa, é uma entidade cultural acessível às indagações do pensamento
científico e filosófico. Murphy já o disse na introdução do seu estudo
sobre as origens da religião, que citamos acima: “O homem é o produto da
evolução, tanto no seu corpo quanto no seu espírito”. Assim, para
usarmos uma expressão de Tagore, “a religião do homem” seria a nova
homogeneidade em que a educação poderia reconstruir-se, não mais na base
ingênua de certezas tradicionais, mas na base dinâmica da expansão do
conhecimento em busca de novas dimensões do espírito.
Educação e religião
O problema do aparecimento e desenvolvimento da escola leiga, do
laicismo pedagógico, tem sua fonte em três grandes equívocos que
felizmente estão agora em fase de extinção. Vejamo-los:
1.º - O equívoco do Materialismo, que na verdade só apareceu de maneira
clara, perfeitamente definida, na época moderna. Tudo quanto se
considera como materialismo na Antiguidade só entra nessa classificação
de maneira forçada. Foi o desenvolvimento das Ciências que permitiu uma
fundamentação positiva para o Materialismo e conseqüentemente a sua
formulação filosófica. Desde então surgiu o conflito Ciência versus
Religião. Os homens cultos e os espíritos fortes opuseram-se ao ensino
da Religião nas escolas por considerá-lo determinante de retrocessos
culturais.
Nesse caso, o equívoco do Materialismo estava certo, porque o ensino
religioso e o seu predomínio na Educação eram também um perigoso e
lamentável equívoco, de vez que as religiões se equivocavam no tocante a
pontos fundamentais do Conhecimento. O laicismo tinha por finalidade
garantir uma educação liberta de superstições e preconceitos que as
religiões semeavam e estimulavam no espírito dos educandos.
2.º - O equívoco do Espiritualismo, que partindo de premissas certas,
na base das Revelações antigas, desenvolveu-se em várias formas de
falsos silogismos, chegando a conclusões erradas na elaboração de suas
teologias, teogonias e dogmáticas. Esse equívoco, traduzido
violentamente no sectarismo das Igrejas foi à razão fundamental da luta
entre Ciência e Religião. O sectarismo violento queria apossar-se de
tudo, a começar pela criança, que desde os primeiros rudimentos de
compreensão devia ser absorvida por ele. Daí o domínio da escola, de que
até hoje não desistiu, porque através dela o sectarismo pretende moldar
a mentalidade das gerações.
3.º - O equívoco da Filosofia, que através da Gnosiologia, da Teoria do
Conhecimento, acabou referendando os dois equívocos acima,
particularmente a partir do criticismo kantiano, que delimitou o campo
do Conhecimento possível, relegando para o impossível – e portanto fora
do alcance científico – os problemas espirituais. A separação entre
Ciência e Religião foi então oficializada no plano cultural. Se o homem
só podia conhecer através da Ciência pelo uso da Razão, não havia motivo
algum que justificasse nas escolas a disciplina religiosa. A escola se
tornava instrumento da Ciência. A Religião devia restringir-se ao âmbito
familial e ser ministrada nas igrejas.
Temos nesse quadro, segundo me parece, o esquema geral do nascimento da
Escola Leiga. Os homens de cultura tinham dois motivos bastante fortes
para rejeitar a Religião na escola. De um lado, ela não podia oferecer
dados positivos e, portanto verdadeiros sobre o que pretendia ensinar.
De outro lado o seu ensino contrariava a Ciência, prejudicando a
formação cultural dos alunos, e, além disso, criava e estimulava
desentendimentos entre os homens, pelas pretensões exclusivistas do
sectarismo. Longe de religar, ela na verdade desligava e gerava
conflitos insensatos, sempre extremamente violentos porque baseados no
fanatismo.
Situação atual
As campanhas pela escola laica abalaram o mundo e conseguiram vitórias
parciais muito importantes. Apesar disso, o sectarismo religioso não
desistiu e não desistirá jamais das suas pretensões, pois não há nada
mais insistente do que o fanatismo, mormente quando aliado a interesses
materiais. Não obstante, a situação atual no campo do conhecimento já
traz em si mesma a solução para esse velho problema. Basta que os homens
responsáveis encarem o assunto a sério e procurem resolvê-lo no
interesse superior das coletividades, sem prejuízo para os sectarismos
religiosos nem para os defensores da independência cultural.
Procuremos encarar a situação atual nos três campos acima
especificados, vendo como seriam solucionados os impasses seculares a
respeito:
1.º - O materialismo perdeu, com a rápida evolução dos conhecimentos
científicos nestes últimos anos, os seus elementos de sustentação no
campo da Razão. O próprio conceito de matéria, tanto no Materialismo
mecanicista do passado quanto no Materialismo dialético de hoje, perdeu a
sua substância. Além da descoberta de que a matéria é simples
condensação de energia, temos agora o grande passo da física na
descoberta da antimatéria. Numa verdadeira ação de pinça, as Ciências
Físicas de um lado e as Ciências Psicológicas de outro, através das
pesquisas nucleares e parapsicológicas, demonstraram positivamente a
existência de outras dimensões do Universo e, portanto das coisas e dos
seres. Já se pode falar cientificamente no Outro Mundo, sem qualquer
implicação religiosa, em bases puramente científicas, pois se admite em
face de provas de laboratório a existência do mundo da antimatéria. Na
Parapsicologia a tese vitoriosa é a da existência do extrafísico no
próprio homem, demonstrando a possibilidade científica da sobrevivência
após a morte. E para coroar essa conquista do invisível os cientistas
soviéticos acabaram de descobrir o corpo bioplástico do homem, um corpo
de forma humana e de natureza energética, visível através da Câmara
Kirlian de fotografia com adaptação de lentes óticas. Está rompida a
barreira kantiana entre o conhecimento positivo e o chamado conhecimento
sobrenatural. Não há sobrenatural: a Natureza continua em outras
dimensões, que já estão sendo incorporadas ao conhecimento racional e
sujeitas à pesquisa científica.
2.º - O Espiritualismo, até mesmo no seio das igrejas mais sólidas e
tradicionais, modificou-se e continua a modificar-se profundamente,
ameaçado nas suas fortalezas antiquadas pelo avanço dos conhecimentos.
Há um acelerado processo de transformação nas Igrejas, que já atingiu a
própria essência de várias delas obrigando-as a modificar não só a
sistemática tradicional dos cultos, mas também a sua Teologia. O caso
Theilhard de Chardin na Igreja Católica e o caso das Novas Teologias nas
Igrejas da Reforma e suas constelações de satélites são suficientes
para mostrar a profundidade da revolução havida e cujo processo continua
a se desenrolar. É verdade que o sectarismo fanático e retrógrado
procura reagir, mas é evidente que os seus estertores são tipicamente
agônicos. O fanatismo obscurantista não tem mais nenhuma possibilidade
de manter o seu domínio nos povos.
3.º - A Filosofia está francamente de volta às suas raízes
espiritualistas, à sua verdadeira tradição, pois ela sempre foi um campo
de cogitação sobre os problemas do espírito. Passado o surto de sarampo
intelectual do Existencialismo ateu de Sartre, que punha a sua ênfase
na existência e aniquilava o Ser, vemo-la de volta, ainda
convalescentes, aos braços do misticismo alemão renascido em Heidegger,
com a afirmação enfática do Ser como único objeto real da cogitação
filosófica. Por outro lado, a Filosofia se impôs de novo como o elemento
fundamental e aglutinador do Conhecimento, com sua plana capacidade de
restabelecer a unidade do Saber, até agora dividido em regiões
indevidamente antípodas.
Assim a situação atual se revela inteiramente favorável à solução do
impasse educacional criado pelo fanatismo religioso. Científica e
filosoficamente já se reconhece que a Religião é uma das províncias
principais do conhecimento. As pesquisas antropológicas, sociológicas e
etnológicas, apoiadas nos dados arqueológicos e na investigação
psicológica e parapsicológica, demonstraram de sobejo que o homem não é
apenas o animal político de Aristóteles, mas também e, sobretudo o ser
religioso de Arnold Toynbee, cujas construções mais grandiosas têm
sempre como esteio o seu substrato fideísta.
O ecumenismo católico, embora não tenha o poder que só o
desprendimento, o desapego dos bens terrenos lhe poderia dar, nem por
isso deixa de ser um sinal dos tempos, uma prova de que a conciliação
das crenças se impõe ao mundo religioso como uma exigência da nova
situação. Como acentuou Garaudy, passamos da era do anátema à era do
diálogo. A Religião tenta superar o fanatismo e o pragmatismo sectário
que a haviam desfigurado. Ventos novos estão soprando na atmosfera
poluída do planeta e devemos esperar que a renovem, afastando e
extinguindo os elementos de poluição.
Religião nas escolas
Ao lado de todos esses eventos auspiciosos devemos assinalar o
desenvolvimento das pesquisas e dos estudos universitários sobre a
Religião abrangendo todos os aspectos do problema. Há um conceito novo
de fé, uma nova interpretação dos fatos religiosos. A contribuição
espírita – que impregnou, consciente ou inconscientemente a obra de
Chardin e dos renovadores da Teologia em geral, já faz sentir a sua ação
benéfica por toda parte. O próprio Espiritismo começa a ser
compreendido – e pelos próprios adeptos – não mais como uma nova seita
destinada a substituir as anteriores, mas como aquela forma de síntese
do Conhecimento de que nos falaram Kardec, Léon Denis e Sir Oliver
Lodge, entre outros.
Tudo isso facilita a compreensão de que não podemos ter Educação sem
Religião, de que o sonho da Educação Laica não passou de resposta aos
grandes equívocos do passado a que acima me referi. O laicismo foi
apenas um elemento histórico, inegavelmente necessário, mas que agora
tem de ser substituído por um novo elemento. E qual seria essa novidade?
Não, certamente, o restabelecimento das formas arcaicas e anacrônicas
do ensino religioso sectário nas escolas. Isso seria um retrocesso e,
portanto uma negação de todas as grandes conquistas que vimos na
apreciação da situação atual.
Reconhecendo que a Religião corresponde a uma exigência natural da
condição humana e a uma exigência da consciência humana, e que pertence
de maneira irrevogável ao campo do Conhecimento, devemos reconduzi-la à
escola, mas desprovida da roupagem imprópria do sectarismo. Temos de
introduzir nos currículos escolares, em todos os graus de ensino, a
disciplina Religião ao lado da Ciência e da Filosofia. Sua necessidade é
inegável, pois sem atender aos reclamos do transcendente no homem não
atingiremos aos objetivos da Paidéia grega: a educação completa do ser
para o desenvolvimento integral e harmoniosa de todas as suas
possibilidades.
Façamos agora justiça a Kant, que acima ficou um tanto prejudicado por
sua posição agnóstica. Lembremos que, fiel aos rigores metodológicos da
sua investigação, ele teve de separar o falso do real dentro das
condições do saber do seu tempo. Nem por isso, entretanto, deixou de
reconhecer a legitimidade dos impulsos afetivos do homem, e na Crítica
do Juízo abriu perspectivas para a compreensão que hoje atingimos. Nele
encontramos a idéia de Deus reconhecida como o supremo conceito que é
dado à criatura humana formular, pois que essa idéia suprema representa
uma síntese do Todo. E nele encontramos também a definição de Educação
como desenvolvimento no homem de toda a sua perfectibilidade possível.
O próprio Kant, portanto, que respondeu pelo divisionismo do campo do
Conhecimento, pode agora responder pela sua reunificação. E é realmente o
que acontece, no momento, graças à corrente neokantiana da Filosofia
contemporânea, onde deparamos com a Pedagogia renovadora de
Kerchensteiner e Rena Hubert aquele na Alemanha e este na França,
pregando uma Educação que tem por fundamento a Filosofia do Espírito.
Nessa forma nova de Educação a Religião comparece, não como um ensino
dogmático e sectário, mas como uma resposta às exigências conscienciais
do homem, esclarecendo-lhe os problemas da existência de Deus, da
natureza espiritual das criaturas e da sua destinação transcendente. Não
é o padre, nem o pastor, nem o rabi, nem a catequista que vão dirigir a
cadeira, mas o professor especializado no assunto, tratando dos
problemas religiosos como se trata dos filosóficos e dos científicos.
De posse dos dados fornecidos pela disciplina escolar o educando
decidirá por si mesmo, de acordo com a sua vocação, as suas tendências e
preferências, o setor religioso em que se localizará, se for o caso.
Mas poderá também se apoiar nesses dados para o desenvolvimento da sua
própria religião, da sua posição pessoal – pois como demonstrou Bergson,
comprovando Pestalozzi, existe a religião dinâmica individual que não
se cristaliza em estruturas sociais.
Alegarão certamente os sectários que essa forma de ensino religioso
livre e optativo (compreenda-se bem: optativo no sentido de facultar ao
educando escolher ou não uma religião, mas obrigatório nos currículos
escolares) equivale ao laicismo vigente. Porque o sectário só entende
por religião válida a que ele professa. Aconteceria o mesmo no campo da
Filosofia se um professor fanático entendesse que só a escola filosófica
de sua preferência devesse ser ensinada. Mas os espíritos arejados,
abertos compreenderão a importância do ensino religioso como disciplina
universitária nos cursos superiores e como matéria didática de
informação geral no primário e no secundário.
Os programas incluirão, nesse caso, os dados objetivos da Origem e
História das Religiões, da Filosofia da Religião, da Sociologia e da
Psicologia da Religião, dentro do objetivo de formação cultural do
aluno. Claro que no curso primário o programa seria adequado, tratando
da existência de Deus, de seu poder criador e mantenedor do Universo, do
sentimento religioso que a sua existência desperta nas criaturas, das
relações entre Deus e o homem, da função das religiões na vida humana,
da importância dos valores religiosos para a formação da personalidade e
assim por diante. No secundário já se poderia, além do necessário
desenvolvimento maior desses temas, incluir elementos de História das
Religiões, das provas da sobrevivência do homem após a morte, das
relações entre o mundo visível e o mundo invisível, da função pragmática
das religiões e assim por diante.
Dessa maneira a Educação não seria parcial, voltada apenas para os
problemas imediatos da vida, mas forneceria elementos racionais para a
formação espiritual do educando. E por isso mesmo não seria também
religiosa no sentido estreito e superado do sectarismo ainda hoje
dominante. Essa providencia me parece urgente, pois estamos, como já
vimos, às portas de uma civilização espiritualista e não podemos
continuar educando as crianças e os jovens nos moldes obsoletos do
passado. Educação sem religião é atualmente absurda, como absurda é
também a educação materialista que continuamos a aplicar.