O Deus judeu, exclusivista e autoritário, definiu-se na
Bíblia com esta afirmação: Eu sou aquele
que é. Os homens já percebiam, então, que a multiplicidade dos deuses era
contraditória em si mesma, militava contra a idéia de Deus. Se Iavé ou Jeová se
apresentava como o Único, sua posição era lógica e respondia às exigências de
coerência do novo pensamento que se desenvolvia em Israel e no mundo. Mas o
exclusivismo de Iavé parecia demasiado arrogante. O poder esmagador de Júpiter,
que através das legiões romanas ameaçava dominar o mundo inteiro, não deixava
lugar para esse deusinho petulante de uma pequena província do Império.
Caberia, talvez, a Zeus, senhor do Olimpo, que levara os gregos a um
desenvolvimento cultural sem precedentes, impor-se como Deus único. Mas quando
o Messias judeu, Jesus de Nazaré, adoçou a arrogância judia chamando Iavé de
Pai, abriu-se a possibilidade de uma aceitação universal do monoteísmo
hebraico. O desenvolvimento posterior do Cristianismo, facilmente infiltrado
nas populações subjugadas do Império Romano, provou a eficácia da intervenção
messiânica. Todos os deuses foram perdendo os seus adeptos para aquele Deus
desconhecido com o qual o Apóstolo Paulo identificara Iavé em Atenas.
Kerchensteiner, em notável estudo, analisou em nossos
dias a fisiologia do mito, mostrando as leis que regem o processo mitológico.
Os deuses não foram inventados pelos homens, como querem as teorias simplórias
de Taylor e Spencer, ainda hoje sustentadas até mesmo pelo chamado materialismo
científico. Os mitos nascem do seio da Mãe-Terra, evocados pelo coração dos
homens, e sobem aos céus escalando montanhas ou nos vapores d’água que se
acumulam na atmosfera. Daí a facilidade com que se tomava a nuvem por Juno ou o
relâmpago por Júpiter. Da Terra-Mãe surgem as pedras e os rios, as matas e os
animais e, por fim, os homens. Mas os homens trazem a idéia de Deus no coração
e possuem a capacidade mental de projetar-se nas coisas e nos seres. A dinâmica
do animismo primitivo gera a floração dos deuses que protegem os povos. Mas os
deuses particulares, das tribos e depois das nações, nada mais são do que a fragmentação
ilusória da unidade primitiva e irredutível. Assim como, partindo das coisas
isoladas – a terra, a água, os vegetais, os animais, etc. – os homens vão
depois descobrindo a unidade da realidade indivisível, pois a realidade é uma
só, formada de inumeráveis conjuntos, assim também a multiplicidade dos deuses
tribais vai aos poucos se fundindo nas pequenas unidades do sistema solar e à
unificação atual do Cosmo, maiores das mitologias nacionais. O homem finito não
pode conceber o infinito como uno e absoluto senão através das experiências do
real. A unificação da idéia de Deus precedeu à unificação copérnica da unidade
do sistema solar e a unificação atual do Cosmo, como exigência primária do
desenvolvimento da razão. Por isso os gregos anteciparam o monoteísmo no plano
filosófico, pelo qual Sócrates teve de pagar o preço da taça de cicuta. Mas a
unidade religiosa só foi possível na reforma do Judaísmo por Jesus de Nazaré,
que os gregos apoiaram chamando-o de Cristo (um nome grego) e que teve de pagar
um preço mais alto com a crucificação romana. Os homens partem das coisas
mínimas para chegarem pouco a pouco às máximas. O mito é, ao mesmo tempo, a
projeção da alma humana nas coisas e a absorção das coisas pelo poder anímico
do homem. A mitologia não foi também a invenção gratuita dos deuses pela imaginação
dos homens, nem a busca de proteção ante a insegurança da vida precária, mas a
tentativa necessária de racionalização do mundo. Superando o sensível da teoria
platônica, os homens converteram o mundo num organismo vivo e inteligível,
através dos mitos. O Olimpo se assemelhava às cortes dos Soberanos terrenos,
com a hierarquia humana de funções e poderes, não por imitação, mas porque
somente assim os homens poderiam compreender o mistério do mundo. Não foi o
medo, mas a curiosidade que gerou os deuses. A prova histórica disso está na
teoria diltheiana do caldeirão medieval, onde, só naquela fase específica da
teocracia medieval a Razão se fundia numa peça única, destinada à preparação do
Renascimento como Idade da Razão.
A embriaguez racional, como acontece aos indivíduos na
passagem da mitologia infantil para o alvorecer racional da puberdade e da
adolescência, levou os homens à rebeldia dos primeiros tempos de liberdade,
geradora do ateísmo e do materialismo. O desenvolvimento das Ciências segue os
rumos da crise da adolescência, no esquema do famoso estudo de Maurice Debesse.
Os homens do Renascimento, do Mundo Moderno e até mesmo do Mundo Contemporâneo
portaram-se como adolescentes no chamado conflito de gerações. Já agora, porém,
nas vésperas da Era Cósmica, os achados
do Renascimento precisam ser revisados, para que a problemática humana seja
respondida em termos de razão; mesmo porque é na razão que temos a imagem de
Deus no homem, não em sua forma corpórea, que o assemelha aos símios. A
concepção antropomórfica de Deus foi uma traquinagem da Humanidade adolescente.
Essa traquinagem se justifica em seu tempo, como simples ensaio religioso para
uma tentativa posterior de colocação da idéia de Deus em termos racionais.
Kardec, em seu livro O Céu e o Inferno,
comparando a mitologia greco-romana com a mitologia cristã, mostrou as
incongruências tipicamente adolescentes da reformulação teológica da idéia de
prêmio e castigo após a morte. O Céu cristão aparece ingênuo e fantasioso como
um sonho de meninotes e o Inferno cristão impiedoso e injusto como uma
descrição de terrores infantis. Tão mais impiedoso e desarrazoado é esse
inferno do que o pagão, que chegamos a rir das graves proposições teológicas
formuladas por teólogos e clérigos eminentes.
O poder temporal da Igreja, que submeteu ao seu
arbítrio as cortes européias, estendendo-se depois a todas as áreas mundiais da
conversão, impediu a análise dessas criações monstruosas e incentivou o
desenvolvimento do ateísmo e do materialismo. O panteísmo de Espinosa foi a
única reação madura aos absurdos teológicos, colocando a concepção monoteísta
em termos realmente racionais. Mas a posição panteísta incide no erro de confundir
a Criação com o Criador, o que diminuiu a eficácia da proposição espinosiana. O
campo continuou livre para o materialismo.
Espinosa teve o mérito de desfazer o engano da
concepção antropomórfica da Bíblia e substituir o símbolo da criação alegórica
do homem numa proposição filosófica de integração cósmica da criatura humana. A
orgulhosa pretensão de separatividade e privilégio, que ainda hoje é pregada
nos seminários de várias igrejas cristãs, foi esmagada pela sua inteligência. O
homem, simples modo ou afecção da substância terrena, nas muitas manifestações
do poder divino, brota da natureza como todas as coisas e a ela volta com a
morte. Mas nem por isso o seu panteísmo caiu no materialismo. A Natureza naturata representa a Criação, é
natureza sensível. Mas por baixo do sensível existe o inteligível, que é a
Natureza naturans, o próprio Deus,
fonte geradora de toda a realidade. Deus é imanente no mundo e todas as coisas
e todos os seres nascem dele, como as fontes e os vegetais. A exposição
matemática de Espinosa em A Ética faz
desse pequeno judeu excomungado o restaurador da grandeza moral e espiritual do
judaísmo. Os rabinos esbravejaram nas sinagogas, mas ele arrancou da sua fé
judaica independente uma contribuição heróica para a concepção existencial de
Deus que apareceria mais tarde na obra de Kardec.
Na Antigüidade encontramos algumas posições que podem
ser consideradas precursoras da posição espinosiana. Encontramos na China o
conceito do Tao, que gerou o Taoísmo, em que o Céu é o próprio Deus e ao mesmo
tempo o caminho da redenção; na Pérsia arcaica a proposição dinâmica de
Zoroastro, que toma o fogo como a única imagem possível de Deus; em Pitágoras,
na Grécia arcaica, a visão cósmica de um Universo integrado em que os reinos da
Natureza permutam incessantemente as suas energias, inclusive o humano; e,
ainda, entre os gregos a concepção isoloísta da Terra como um ser vivo e
gerador de vida. A Música das Esferas, girando no Infinito, podia ser captada
pelos ouvidos sensíveis e dava a essa concepção o valor estético de uma criação
musical. Nenhuma dessas concepções elevadas, entretanto, conseguiu
socializar-se e conquistar o povo. Foram clarões da inteligência humana que não
comoveram o homem, o que Jesus de Nazaré conseguiu, transformando o mundo, não
obstante as igrejas nascidas do seu pensamento o houvessem deturpado com
incríveis enxertos do mais primário paganismo. O próprio Jesus foi transformado
num mito em que há pinceladas fortes de Apolo e Osíris. Ritos simplórios das
religiões pagãs, como as bênçãos de aspersão (de origem fálica) perderam a sua
naturalidade ingênua e pura e se transformaram em ritos sofisticados e
desprovidos de seu sentido genético. Igrejas pagãs foram transformadas pela
força e embuste em templos cristãos, como a igreja rústica da deusa Lutécia, em
Paris, sobre a qual foi erguida mais tarde a Catedral de Notre Dame, que guarda
em seu porão os restos da igreja pagã.
Os herdeiros do Cristianismo primitivo sufocaram as
práticas mediúnicas de que o Apóstolo Paulo dá notícias em sua I Epístola aos Coríntios,
asfixiaram as manifestações do espírito (o pneuma grego), introduziram altares
e imagens no culto cristão e negaram o princípio da reencarnação constante de
vários trechos dos Evangelhos. Ao invés de desenvolverem a concepção cristã de
Deus, restabeleceram a concepção mitológica de Iavé como Deus dos Exércitos e
voltaram à violência bíblica que Jesus havia substituído pelo amor e a
caridade, implantando as guerras de conquista em nome do Deus judaico antigo,
chegando mesmo a adotar a imagem de um Deus iracundo e cruel, vingativo e
ordenador de matanças e devastações do tipo bíblico da conquista de Canaã.
O Deus mitológico dos judeus absorveu em sua concepção,
como Deus do Cristianismo deformado, os deuses da Antigüidade mais violentos,
num processo de sincretismo religioso até então sem precedentes. Todas essas
deturpações vingaram entre as populações incultas da Europa, a partir do século
IV da Era Cristã, asfixiando a essência dos ensinos renovadores do Cristo e
criando condições propícias para a revolta do ateísmo e do materialismo que
explodiria na Era da Razão, após a Idade Média. A unicidade de Deus, que devia
ampliar e elevar o conceito de Deus no mundo, transformou-se na multiplicidade
dos deuses, no politeísmo dos altares carregados de imagens destinadas à
adoração dos crentes interessados em milagres e no comércio de indulgências. A
Reforma do século XVI, iniciada por Lutero, com objetivo de retorno ao
Cristianismo puro, foi também desfigurada pela influência de inovadores
violentos, como Calvino, apegado à violência bíblica.
Apesar de todas essas deformações, o Cristianismo,
particularmente após a Reforma de Lutero e a publicação dos Evangelhos em línguas
populares de várias nações, contribuiu poderosamente para modificar a selvageria
dos homens; porque os princípios cristãos, vividos por clérigos humildes e
humanos como Francisco de Assis e outros, conseguiram tocar os corações
sensíveis em todo o mundo.Victor Hugo, em seu Prefácio de Cromwell, considerado como manifesto do romantismo,
traçou em pinceladas ardentes a modificação profunda que o Cristianismo
conseguiu, apesar de todos os percalços, promover no pensamento europeu, com
reflexos mundiais. O conceito de Deus como o Pai era tão poderoso, correspondia
de tal maneira aos anseios de populações cansadas de guerras e violências, que
conseguiu superar os malefícios, embora em parte, das adulterações ocorridas em
dois mil anos e ainda hoje em desenvolvimento. Essa constitui uma prova
altamente significativa, na dura experiência religiosa da Terra, da importância
do conceito de Deus para a evolução planetária. Por isso, apesar de tudo,
podemos ainda esperar que o restabelecimento progressivo, lento e difícil, da
pureza dos ensinos de Jesus, juntamente com o avanço cultural e científico do
nosso tempo, que leva a Ciência à necessária conversão, prepare nos próximos
séculos condições mais favoráveis à espiritualização racional da Terra. A razão
conturbada por tantos absurdos deverá restabelecer-se em seus fundamentos
espirituais, pois quem diz razão não se refere à matéria, mas ao espírito.
Apesar das confusões materialistas a respeito de cérebro e mente, já se começa
a compreender essa coisa tão simples e clara: que a razão é função do espírito
e, como assinalou Rhine, que o pensamento é uma energia extrafísica. Enquadrando-se
nessa nova perspectiva e conceito existencial de Deus, é possível que a guerra
nuclear desapareça com o advento das novas gerações, libertas dos prejuízos do
passado e do presente. É sempre melhor pensar no melhor.