REMINISCÊNCIA
Medeiros e Albuquerque
O Brasil republicano vagia entre
as faixa do berço, quando conhecí Manuel Ramos, nome pelo qual designarei
um amigo obscuro, que abracei pela primeira vez no curso de breve contenda
com portugueses ilustres, a propósito de Floriano.
Comentávamos desfavoravelmente
as atitudes cordiais do embaixador Camelo Lampreia, que primava pelo
bom-senso, na conciliação dos elementos axaltados, ante os atos do
Consolidador, quando um amigo brasileiro, justamente indignado, se prepara
a revide de enormes proporções, de mundos cerrados e carantonha sombria.
Assustado, procurava eu apartar os contendores, quando surge o Manuel, com
a carcaça de um touro e com a alma de anjo, evitando o pugilato.
Conteve os antagonistas, qual se
fora uma gladiador romano, habituado ao manejo de feras, e eu, tomado de
simpatia, ofereci-lhe a mão, em sinal de reconhecimento, quando os ânimos
irritados possibilitaram a conversa pacífica.
No amplexo amistoso, porém,
observei que Manuel não era servidor comum, que se contentasse com a
gorjeta ou com o elogio fácil.
Surpreendeu-me com o seu olhar
indagador, a fixar-me insistentemente.
E quando preparei, intencional,
as frases da despedida, o musculoso interventor da rixa inesperada me
falou, sem preâmbulos:
Doutor Medeiros, poderá
conceder-me uma palavrinha?
Quem não anuíra em ocasião como
aquela?
O rapaz, contudo, foi breve.
Biografou-se com simplicidade, atrvés de informes curtos e francos.
Era empregado na cozinha de
portugueses acolhedores, que o faziam encarregado da bacalhoada acessível
à numerosa freguesia, em atividade regular no porto. Fluminense de origem,
buscava o Rio com o sonho maravilhoso de todos os moços pobres do
interior, que imaginam na metrópole o Eldorado das miragens de Orellana.
Não conseguira, entretanto, senão a colocação humilde, em casa de pasto,
embora vivesse de livro às mãos.
Estudadva, estudava, mas... –
salientava, desalentado – a sorte lhe fora incrivelmente adversa.
Onerado de compromissos, na
órbita da família, vira o pai morrer, quase sem recursos, minado pela
peste branca, e presenciara a loucura de sua mãe, desvairada de dor sobre
o cadáver do companheiro e mais tarde internada, com ficha de indigente,
em hospício da Capital.
Sobravam-lhe, ainda, quatro
irmãs para cuidar.
Ganhava pouco e mal conseguia
atender ao constante dreno doméstico. Agrupou em palavras rápidas e
respeitosas diversas questões pequeninas que lhe apoquentavam a mente,
detendo-se, porém, no caso materno, com minudências curiosas a lhe
revelarem a grandeza do sentimento afetivo; e, por fim, imprimindo
significativa reverência ao timbre de voz, pediu-me conselho,
asseverando-se informado quanto aos meus estudos de magnetismo.
Não poderia, de minha parte,
prestar-lhe socorro?
Reparando, talvez, a ponta de
sarcasmo que me assomou ao sorriso de gozador impenitente, consertou o
passo, acentuando que, se me não fosse possível a visita direta ao
internato, a fim de aliviar-lhe a genitora doente, esperava que eu lhe
desse, pelo menos, algumas noções alusivas ao assunto.
Ante a sinceridade cristalina e
a beleza do devotamento filial que ele aparentava, por pouco lhe não pedi
desculpas pela ironia silenciosa de momentos antes, e assenti.
Realmente, expliquei, não me
confiava a experiências do teor daquela que me solicitava, mas dispunha de
literatura valiosa e aproveitável.
Ceder-lhe-ia com prazer o
material que desejasse.
Combinamos o encontro para o dia
seguinte.
Apareceu Manuel, pontualmente, à
entrevista, ouvindo-me, atencioso, como se ele estivesse à escuta de
informações relativas a tesouros ocultos.
Acreditando falar muito mais
comigo mesmo. Recordei, para começar, a fugura de Mesmer.
Manuel, contudo, não se mostrou
leigo no assunto, Frederico Mesmer era para ele velho conhecido.
Reportou-se, de modo simples, às leituras em francês a que se consagrava
cada noite, em companhia de anônimo poliglota do subúrbio, e referiu-se à
clínica do grande magnetizador na Place Vendôme, qual se houvera
morado em Paris ao tempo de Luís XVI. Sabia quantos reveses o valoroso
professor havia sofrido para provar as novidades científicas de que se
sentia portador. O rapaz chegava a conhecer o texto do voto vencido, com o
qual De Jussieu, o fundador da botânica moderna, se revelava o único amigo
da verdade, na comissão indicada pela Sociedade Real de Medicina, a fim de
apurar a realidade dos fenômentos magnéticos.
Agradavelmente surpreendido,
senti-me à vontade no comentário aberto.
Recordei De Puységur,
anotando-lhe os experimentos preciosos, quando, modiscado de curiosidade,
passeava no salão a gritar, inquieto, para os ouvidos de seus pacientes: -
“Dorme! Dome!”
E, num desfile de impressões do
brasileiro que vive de frente para a Europa, falei-lhe de Braid, de
Liébeault, Bernheim e Charcot, especificando as características das
escolas de Nancy e de Paris.
Alinhei minhas próprias
observações, e Manuel, então silencioso, me assinalava as palavras como se
fora deslumbrado e ditoso devoto à frente de um semideus.
Recolheu, contente, a copiosa
literatura em português e francês que lhe pus nas mãos ávidas e partiu.
De quando em quando me
procurava, gentil, em visitas apressadas, a que, por minha vez, não
prestava maior atenção.
A vida abriu-me caminho, por
outros rumos, no seio do matagal, ao invés de seguir no curso de águas
pacíficas, e, à maneira do seixo que rola para o mar,
impulsionado pelos detritos que descem da serra, a golpes irresistíveis da
enxurrada grossa, ao invés de seguir no curso de águas, pacíficas, avancei
no tempo, através de peripécias mil, na política e na imprensa, incapaz de
erguer-me à esfera transcendente das cogitações religiosas.
Quando, em 1916, voltei da
Europa com largo programa de serviço pró-adesão do Brasil aos Aliados, na
culminância da batalha jornalística, eis que me aparece o Manuel, em pleno
escritório, num singular extravasamento de alegria.
Forçava portas e afrontara
auxiliares neurastênicos para ver-me e apertar-me nos braços.
Doutor Medeiros! Doutor
Medeiros! Enfim! ... – clamava, ofegante – há quanto tempo, meu Deus! Há
quanto tempo!...
Respondi-lhe ao abraço, com um
sorriso forçado, porque nesse mesmo instante deveria avistar-me com Lauro
Müller, a respeito de solenes decisões na campanha popular desencadeada.
Desejei provocar a retirada do
importuno, que deixava transparecer nas bochechas de quarentão maduro
aquela mesma alegria robusta do tempo de Floriano.
A conversação dele fazia-se
absolutamente imprópria, a meu ver, em semelhante ocasião; entretanto,
Manuel não me ofereceu qualquer oportunidade de censura cordial ao seu
procedimento.
Eufórico, palavroso,
desaparafusou a língua e narrou êxitos sobre êxitos.
O magnetismo desvendara-lhe
estradas novas. Conseguira milagres. Mantinha correspondência ativa com
estudiosos ilustres da França. Apresentava, garboso, conclusões próprias
acerca do desdobramento da personalidade. Enfileirava apontamentos
especiais sobre o sistema nervoso. Engalanava-se com dezenas de casos
raríssimos de cura, inclusive o da própria genitora que se reequilibrara e
ainda vivia.
E acrescentava informes,
referentes ao jardim doméstico, sem me oferecer um minuto para qualquer
consideração.
Casara-se. Possuía três filhos
que pretendia apresentar-me. A esposa e ele acompanhavam, carinhosamente,
as minhas páginas em “A Noite”. Convidava-me a visitar-lhe a família,
quando chega o recinto a ex-ministro, fitando-me com assombro, como se me
surpreendesse na companhia de um louco.
O antigo quituteiro do
restaurante português não se deu por achado ouvindo declinar o nome do
respeitável político. Iluminaram-se-me os olhos, cobrou ânimo novo e, sem
mais nem menos, recomendou-nos freqüência assidua às sessões espirituais a
que se dedicava nas noites de terças e sextas-feiras, junto de amigos e
estudantes do Evangelho, encarecendo a necessidade de homens
espiritualizados na administração do País. Reportou-se a Bittencourt
Sampaio com frases quentes de aplauso. Sacou do bolso, que denotava
prolongada ausência da lavanderia, seboso maço de papéis e leu, em voz
estentórica, a prmeira mensagem de Bezerra de Menezes, no “Grupo Ismael”,
através do médium Frederico Júnior, e, longe de parar, abriu diante de nós
maltratado volume do Novo Testamento, combinando a leitura de alguns
textos com as páginas de Allan Kardec, ao mesmo tempo que indagava de
minhas impressões acerca da Casa dos Espíritos, em Paris.
Mastiguei uma resposta qualquer,
e Manuel, absolutamente incapaz de entender a minha inadaptação às
verdades de que se fizera pregoeiro, continuou exaltando os imperativos de
renúncia e de sacrifício para nós ambos, como se fora trovejante
doutrinador em praça pública.
E quando se inclinava no
comentário de reencarnações passadas, afirmando ter vivido ao tempo de
Gengis Khãn, mal sopitando a vergonha que aquela intimidade me provocava,
recomendei-lhe silêncio em tom autoritário e descortês.
O pobre amigo empalideceu e,
enquanto o ex-ministro de Venceslau Brás erguia para mim o olhar
perscrutador, informei, implacável, indicando Manuel estarrecido:
Lauro, tenho aqui um
ex-empregado requerendo nossos préstimos. Não é má pessoa, mas enlouqueceu
de repente. Guarda a mania do espiritismo e eu desejava seus bons ofícios
para que o infeliz obtivesse tratamento acessível na Praia Vermelha. Creio
que não precisará do internato em regra, mas não pode prescindir de algum
contacto com o hospício.
O grande político levou o caso a
sério e respondeu sem hesitar:
Esteja descansado. Farei por ele
quanto possa.
Nunca me esquecerei do olhar
humilde que Manuel me dirigiu sem a menor reação, com duas grossas
lágrimas, ao despedir-se cabisbaixo, sem mais uma palavra.
Depois, a vida continuou
rolando, arrastando-me em seu torvelinho trepidante, mas o meu antigo
aprendiz de magnetismo não mais me apareceu no caminho.
Política, jornalismo,
aventuras...
Eis o sono, era a morte?
Que sabia eu?
Compreendia apenas que não era
mais possível brincar com a inteligência.
Indefinível pavor do
desconhecido me assaltava o coração, afogado em lágrimas que eu não
conseguia derramar.
Densa noite envolvera-me de
súbito, e eu gritei com toda a força dos pulmões cansados, clamando por
enfermagem e socorro, que se me afiguravam distanciados para sempre.
Em que tenebroso lugar minha voz
vibraria agora, sem eco? que ouvidos me captariam as lamentações?
Por quanto tempo supliquei apoio naquela posição de insegurança?
É inútil formular indagações a
que não podemos responder.
Um instante surgiu, contudo, em
que percebi junto de mim prateada luz.
Alguém se aproximava, dando-me a
idéia de piedoso visitador, remanescente talvez de São Bernardo, o
salvador de viajantes perdidos nas trevas.
Diante do meu deslumbramento, a
claridade cresceu, cresceu, e uma voz, que jamais olvidei, saudou
alegremente:
Doutor Medeiros! Doutor
Medeiros!...
E o Manuel surgiu fulgurante de
rara beleza, ante meus olhos assombrados, estendendo-me os braços
fraternos.
Quietou-se-me, então, o
raciocínio humano, apagaram-se-me os pruridos da inteligência.
Manuel, aureolado de sublimada
luz, era para mim agora um verdadeiro redentor. Confiei-me ao seu carinho,
copiando a rendição da criança assustada, que se refugia no seio materno,
e uma vida nova começou para mim, somente imaginável por aqueles que sabem
sobrepairar ao turbilhão de mentiras humanas, para escutarem, de alguma
sorte, a mnsagem renovadora dos companheiros que atravessaram a cinzenta e
gelada fronteira do túmulo.
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