MANIA DE
ENFERMIDADE
Humberto
de campos
– Vamos Luísa! – exclamava Inácio Penaranda, dirigindo-se à
esposa afetuosamente – creio estimarás o tema evangélico desta noite.
Prometem-nos valiosas conclusões, relativamente à mediunidade e seu
exercício. Ao que suponho, os esclarecimentos apresentarão singular
interesse para nós ambos.
Luísa apoiou o rosto na mão direita, num gesto muito seu, e
disse com enfado:
– Ora, Inácio, achas que posso cometer a imprudência de
enfrentar a noite chuvosa? E a minha nevralgia? A gripe do Carlos e o
reumatismo de mamãe? Não teria ouvido para as lições a que te referes.
Francamente, não posso compreender tuas boas disposições invariáveis.
Inácio aprimorava o nó da gravata e respondia:
– Compreendo os teus cuidados, mas devo lembrar que há três
anos te esquivas à minha companhia. Naturalmente, devo ser o primeiro a
encarecer tuas virtudes de filha e mãe; creio, porém, que exageras o
sentido das enfermidades. Em vão procura interessar-te nos problemas da
fé, inutilmente busco inclinar-te a mente para os problemas mais nobres da
vida. Não sabes falar senão de doenças, insânias, ventosas, injeções e
comprimidos. Vives quase esmagada por expectativas angustiosas. A chuva
aborrece-te, o frio te atormenta, o vento leve te atemoriza. Tudo isso é
de lamentar, porque nossa casa não se formou no pântano da ignorância, mas
nos alicerces de conhecimentos sólidos. Nossa fé consagra a iluminação
íntima como patrimônio mais precioso do mundo. Por que, então, viver
assim, descrente de Deus e de ti mesma?
A Srª Penaranda esboçou um gesto de sensibilidade ofendida
e redargüiu chorando:
– Sempre as mesmas exortações ásperas! Quando me poderás
compreender? Sabe Deus minhas lutas, meus esforços para reaver a saúde
perdida!...
– Certamente, Deus não desconhece nossos trabalhos, mas
também não poderia aplaudir nossas inquietações injustificadas.
Dona Luísa cravou os olhos no companheiro, extremamente
excitada, e bradou:
– Céus! Que infelicidade a minha! Que mágoa irremediável!
Estou só, ninguém me compreende. Valha-me Nosso Senhor Jesus - Cristo!...
Após dirigir-lhe um olhar de piedade, o marido despedia-se:
– Não precisas aumentar a lamentação. Até logo.
A companheira torcia as mãos, desconsolada; todavia,
escoados alguns minutos, correu à porta de saída a gritar:
– Inácio! Inácio!
Ele voltou a indagar os motivos do chamamento.
– A capa! – explicava a dona da casa, ansiosamente. –
Esqueceste a capa... Lembra-te de que me sinto aniquilada. Não queiras
também arruinar a saúde.
Inácio, resignado, vestiu o capote impermeável e saiu
calmamente.
Aquela mania da Srª. Penaranda, contudo, era muito velha.
Dona Luísa não enxergava senão miasmas e pestilências por todos os lados.
Embora as dores que cultivava, grande parte do dia era por ela empregado
em esfregar metodicamente o assoalho, receosa do acúmulo de pó. Nunca
permitia que o filho se levantasse da cama antes que o Sol inundasse as
dependências da casa; trazia a velha genitora quase totalmente enfaixada
num quarto escuro, rodeada de ungüentos e caixas de injeções, e para si
mesma descobria diariamente os mais extravagantes sintomas. Referia-se a
dores nos braços, nas pernas, no rosto. Dizia-se vitima de todos os
sofrimentos físicos. A imaginação enfermiça engendrava moléstias nas mais
ínfimas sensações e, na residência dos Penaranda, nos fins de mês, as
contas da farmácia superavam todas as demais despesas reunidas. Debalde o
marido lhe oferecera as luzes do Espiritismo cristão, ansioso por
modificar-lhe as disposições mentais. Dona Luísa furtava-se às observações
mais sérias e não sabia viver senão entre sustos, pavores e preocupações.
Raro o dia em que, ao voltar dos serviços habituais, o companheiro não a
encontrava afogada em grosso costume de lã, hermeticamente encafuada na
alcova, a lamentar o vento, a umidade, a nuvem...
De quando em quando, valia-se Inácio de oportunidades da
conversação comum, tentando incutir idéias novas no espírito da
companheira, de modo a criar-lhe ambiente diverso. A teimosa senhora não
se resignava a omitir comentários a doenças de toda sorte.
Quando a situação doméstica se tornou mais grave, o chefe
da família não se conteve e intimou a esposa a ocupar-se de assuntos mais
elevados, compelindo-a a examinar nobres problemas espirituais e a ouvir
preleções evangélicas em sua companhia.
Dona Luisa atendeu, porém constrangidamente, a queixar-se
amargurada. No curso das reuniões a que compareceu forçada pelo marido,
causava compaixão a quantos lhe ouviam a palavra lamentosa. A infeliz
criatura não andava; arrastava-se. Suas considerações sobre a vida eram
acompanhadas de suspiros comovedores, como se a sua palestra não devesse
passar de gemidos longos. Não ouvia as dissertações construtivas nem
participava das orações no ambiente geral. Apenas prestava atenção às
consolações de Salatiel, o amorável benfeitor invisível que comparecia a
quase todas as reuniões. À maneira de criança viciada a receber carinhos,
cheia de noção exclusivista, Dona Luisa agarrava-se às expressões de
conforto, completamente alheia aos apelos de ordem espiritual. Parecia,
contudo, tão esmagada de padecimentos físicos, que a Srª. Marcondes,
devotada médium do Grupo, se ofereceu voluntariamente a levar-lhe socorros
espirituais na própria residência. A família Penaranda aceitou, sumamente
reconhecida. Enquanto Inácio examinava a possibilidade da renovação mental
da esposa, antegozava Dona Luisa o momento em que pudesse conversar com o
Espírito Salatiel, quase a sós, para comentar as enfermidades numerosas
que lhe invadiam o corpo e lhe assaltavam o lar.
Começaram os trabalhos de assistência, em círculo muito
íntimo.
O dono da casa não cabia em si de esperança e
contentamento.
Na primeira noite de orações, Salatiel discorreu sobre a
Providência do Eterno Pai e as divinas possibilidades da criatura. O verbo
amoroso e sábio da venerável entidade extravasava luz de esclarecimento e
mel de sabedoria. Mas, com enorme surpresa dos presentes, fenda a
preleção, Dona Luisa adiantou-se, interpelando o instrutor invisível:
– Meu caro protetor, antes de vos retirardes gostaria de
vos ouvir sobre as dores que venho sentindo no braço esquerdo.
Depois de prolongado silêncio, o amigo espiritual, como o
homem educado a atender uma criança, respondeu qualquer coisa que a
induzia à confiança no Poder Divino.
A consulente não se deu por satisfeita e pediu explicações
para a comichão que sentia nos pés; também sobre o abatimento do filhinho
e um exame dos órgãos de sua velha mãe. Sentindo-se crivado de
interrogações inoportunas, o benfeitor invisível prometeu alongar-se
convenientemente no assunto, na reunião da semana seguinte.
Com efeito, na sessão imediata, compareceu Salatiel e
endereçou significativa mensagem à Srª. Penaranda.
– Minha irmã – dizia ele solicitamente –, não construas
cárcere mental para as tuas possibilidades criadoras na vida. É razoável
que o doente procure remédio, como o sedento se encaminha à fonte amiga
que lhe desaltera a sede. Não envenenes, porém, os teus dias no mundo com
a idéia de enfermidades. Por que esperar a saúde completa, num plano de
material imperfeito como a Terra? Se o planeta é, reconhecidamente, uma
escola, é justo não possa constituir morada exclusiva de educadores. Se a
reencarnação é desgaste de arestas, como aguardar expressão de pureza
absoluta nos elementos em atrito? O corpo humano é campo de forças vivas.
Milhões de indivíduos celulares ai se agitam, à moda dos homens nas
colônias e cidades tumultuosas. Há contínuos serviços renovadores na
assimilação e desassimilação. Se isto é inevitável, como aguardar perfeita
harmonia orgânica na máquina celular desmontável e perecível? Lembra-te de
que esse laboratório corporal, transformável e provisório, é o templo onde
poderás adquirir a saúde eterna do Espírito. Andaria acertado o crente que
se deixasse deter voluntariamente no lodo que recobre as paredes da sua
casa de oração, indiferente à intimidade sublime e profunda do santuário?
É justo que as figurações externas requisitem a nossa atenção, mas não
podemos esquecer o essencial, o imperecível e o melhor. Pondera minhas
despretensiosas palavras e liberta a mente encarcerada nas sombras
transitórias, recordando o ensinamento de Jesus quando asseverou que nosso
tesouro estará sempre onde colocarmos o coração.
Dona Luísa, porém, continuou impermeável às admoestações
nobres e elevadas. Não valeram conselhos de Salatiel, com amorosas
interpretações do marido e dos irmãos na fé.
Os anos agravaram-lhe preocupações e manias, até que a
morte do corpo se encarregou de atirá-la a novas experiências.
Qual não lhe foi, porém, a surpresa dolorosa ao ver-se
sozinha, abandonada, sem ninguém?! Guardava a nítida convicção de haver
transposto o limiar do sepulcro, mas continuava prostrada, experimentando
vertigens, dores, comichões. Tomada de pavor, observava os pés e mãos
singularmente inchados, a epiderme manchada de notas gangrenosas dos
derradeiros dias na Terra. Orava, e contudo as suas orações pareciam sem
eco espiritual.
Quanto tempo durou esse martírio? Luísa Penaranda não
poderia responder.
Chegou, no entanto, o dia em que pôde lobrigar o vulto de
Salatiel, depois de muitas lágrimas.
– Oh! venerável amigo! – exclamou a desencarnada,
agarrando-lhe as mãos – por que semelhantes sofrimentos? Não é certo que
deixei a experiência terrestre? Não ouvi muitas vezes que a morte é
libertação?
Enquanto o generoso emissário a contemplava, compadecido, a
infeliz continuava:
– Onde a justiça de Deus que eu esperava? Nunca fui má para
os outros...
A essa altura, o benfeitor espiritual tomou a palavra e
esclareceu:
– Sim, Luísa, nunca foste má para os outros, mas foste
cruel contigo mesma. Não sabes que toda libertação ou escravização podem
começar na Terra ou nos círculos invisíveis? Sepulcro é mudança de casa,
nunca de situação espiritual. A morte do corpo não elimina o campo que
plantamos. Aliás, é a sua mão que nos oferece a colheita. Preferiste a
idéia de enfermidade, cultivaste-a, alentaste-a. É natural que teu campo
aqui seja o da enfermidade. Não existe outro para quem, como tu, não quis
pensar noutra coisa.
E, ante o olhar assombrado da infeliz, Salatiel rematava:
– Existe o Reino de Deus que aguarda a glorificação de
todas as criaturas, e existem os reinos do «eu», onde nos internamos pelas
criações do próprio capricho.
Abandonemos os reinos inferiores das nossas ilusões, minha
boa amiga! Procuremos o Reino de Deus, infinito e eterno!...
A Srª. Penaranda sentiu arfar-lhe o peito, alucinada de
esperanças novas.
– Leva-me contigo, generoso Salatiel! Livra-me destes
dolorosos padecimentos!... Ensina-me o caminho da Liberdade!...
O mensageiro lançou-lhe um olhar fraterno e, fazendo menção
de retirar-se, acentuou:
– Posso, como outrora, convidar-te, não, porém,
arrastar-te. O problema pertence ao teu foro individual.
O trabalho é do teu campo. Arranca-lhe a erva daninha e
semeia-o de novo. Vem conosco, Luísa. Ajuda-te. Se te sentes
verdadeiramente cansada da escravidão em que tens vivido, recorda que para
a libertação do Espírito todo minuto é tempo de começar.
Livro “Reportagens e Além Túmulo”. Psicografia de Francisco
Cândido Xavier.