Muito Será Perdoado a Quem Muito Amou
Artigo publicado no jornal "Unificação" - Ano XIV - Agosto de 1966 - Número 161
E eis
que uma mulher da cidade, uma pecadora, sabendo que ele estava à mesa em
casa do fariseu, levou um vaso de alabastro com ungüento.
E, chorando, começou a regar-lhe os pés com lágrimas, e enxugá-los com
os cabelos; e beijava-lhe os pés, e ungia-lhes com o ungüento.
Quando isto viu o fariseu que o tinha convidado, falava consigo,
dizendo: Se este fora profeta, bem saberia quem e qual é a mulher que
lhe tocou, pois é uma pecadora.
E respondendo, Jesus, disse-lhe: Simão, uma coisa tenho a dizer-te. E ele disse: Dize-a, Mestre.
Um certo credor tinha dois devedores: um lhe devia quinhentos dinheiros, e o outro cinqüenta.
E, não tendo eles com que pagar, perdoou-lhes a ambos. Dize, pois: qual deles o amara mais?
E Simão, respondendo, disse: Tenho para mim que é aquele a quem mais perdoou. E ele disse: julgaste bem.
E voltando-se para a mulher, disse a Simão: Vês tu esta mulher? Entrei
em tua casa, e não me deste água para os pés; mas esta regou-me os pés
com lágrimas e me enxugou com os seus cabelos.
Não me deste ósculo, mas esta, desde que entrou, não tem cessado de me beijar os pés.
Não me ungiste a cabeça com óleo, mas esta ungiu-me os pés com ungüento.
E por isso te digo que os seus muitos pecados lhe são perdoados, porque
muito amou: mas aquele a quem pouco é perdoado pouco ama”.
(Lucas, 7:37-47).
Os evangelistas Mateus e Marcos, narrando a mesma ocorrência, afirmaram
que os apóstolos de Jesus, ali presentes, se indignaram com aquele
desperdício de ungüento, ponderando que o melhor seria vendê-lo por bom
preço, fazendo com que o produto da venda fosse revertido em favor dos
pobres. O Mestre, discordando desse modo de pensar dos seus discípulos
esclareceu: “ela fez uma boa ação. Porquanto sempre tendes convosco os
pobres, mas a mim não me haveis de ter sempre. Em verdade vos digo que,
onde quer que este Evangelho for pregado, em todo o mundo, também será
referido o que ela fez, para memória sua”.
Os apóstolos não sentiam, em toda a sua extensão, o que se passava no
coração de Maria de Betânia, e, em vez de compreender o significado
daquele gesto, preferiram antes criticar a perda daquele ungüento de
alto valor.
A virtude coexiste com o amor. Aquela mulher, em cujo coração existia o
amor em potencial, começava a aninhar no recesso de sua alma uma forma
de virtude que não podia ser vista ou sentida, nem pelos apóstolos, nem
pelo fariseu Simão, dada a montanha de preconceitos que mantinham dentro
de si, mas que o olho bom do Divino Pastor via e compreendia em toda a
sua plenitude.
Os espíritos nos ensinam que o ser encarnado se depara com duas
alternativas nos tramites da sua evolução espiritual, para cujo
discernimento goza do livre-arbítrio; ou faz com que sua evolução se
processe normalmente pelas pautas do amor, ou terá que fazê-lo,
violentamente, sob o guante da dor.
A lei inflexível do progresso não permite que o espírito permaneça
indefinidamente na ociosidade, menosprezando as dádivas generosas que a
Justiça Divina, por excesso de misericórdia lhe concede, e que
representam inequívoca demonstração do exuberante amor de Deus para com
suas criaturas. O espírito terá que demandar, inexoravelmente, as
culminâncias dos planos espirituais, através dos renascimentos
sucessivos na carne.
A sublimidade do gesto daquela mulher, ungindo os pés de Jesus,
retratava, em toda a sua profundeza, os anseios por uma vida pautada nos
maravilhosos preceitos daquele manso Cordeiro de Deus, que percorria as
províncias da Judéia sugerindo aos homens que porfiassem em entrar pela
porta estreita das responsabilidades e da observância das leis morais
recebidas por Moisés, no alto do Sinai, e ratificadas por Jesus Cristo,
repelindo o acesso à porta larga das satisfações dos gozos mundanos.
Dirigindo-se à mulher, e afirmando que “os seus muitos pecados lhe eram
perdoados”, não estava, logicamente, nas cogitações do Mestre, dar
demonstração de uma exceção na lei ou de um tratamento unilateral no
quadro da Justiça Divina.
É óbvio que, procedendo daquela forma, o Cristo não derrogou qualquer
lei divina e nem premiou um espírito em quem não havia mérito.
No desenvolvimento daquela passagem evangélica, o Senhor deixou bem
patenteado que os sofrimentos inenarráveis daquela criatura, retemperada
pelo remorso, haviam transmudado os seus sentimentos, assim como o fogo
aplicado ao cadinho faz com que o ferro se derreta e adquira novas
formas. Os seus padecimentos físicos e morais, sob a influência do
remorso retificador, fizeram com que todos os sentimentos inferiores que
haviam se aninhado no recôndito da sua alma, cedessem lugar a uma forma
irrestrita de amor, que foi enaltecida por Jesus.
O Senhor sondava as profundezas dos corações humanos e, no caso
específico daquela mulher via retratado, em seu íntimo, todo um mundo de
dor querendo tomar a configuração de um sentimento nobre. O amor havia
coberto toda uma multidão de pecados, e Maria de Betânia produzindo
aquele fato grandioso de ungir os seus pés, derramar neles as suas
lágrimas e enxugá-los com os seus cabelos, deu efusiva demonstração do
seu estado de alma.
Eis aí o poder maravilhoso do Evangelho, que opera as transformações
mais inconcebíveis para o gênero humano: fazendo com que, na mesma
existência física, uma criatura deixe de se chafurdar nos vícios para
dar inicio a um processo de auto-reforma.
Maravilhosa explosão de fé propiciada por uma mulher pecadora, que
sentia no recesso da sua alma toda a iniqüidade reinante nos corações
dos homens e se predispunha a procurar aquele que é o Caminho, a Verdade
e a Vida, a fim de que ele lhe desse uma certeza de que nem tudo estava
perdido. Procedendo daquela maneira, a mulher procurava fazer ressaltar
a sublime sinceridade do seu arrependimento e a sua firme disposição de
lutar pela sua própria reabilitação.
A reforma de Maria foi decisiva e a comprovação da mesma temo-la em um
fato ocorrido posteriormente e narrado em Lucas 11:38-41, onde está
descrito que Jesus, visitando a casa de Lázaro, Maria se pôs a zelar
pelas aparências do lar, e como Maria se comprazia unicamente em ouvir
os ensinos do Mestre, Marta obtemperou: Mestre não se te dá de que minha
irmã me deixe servir só? A que o Senhor respondeu: Marta, Marta está
ansiosa e afadigada com muitas coisas. Mas uma só é necessária: e Maria
escolheu a boa parte, a qual não lhe será tirada.
A falência da alma é transitória e dura apenas o suficiente para um
adequado amadurecimento da razão, pois, quando o espírito encarnado
aquilata o quanto perde por transigir com o erro, e vê, de relance, toda
a majestosidade de um plano de progresso incessante, onde os espíritos
bons são os despenseiros da vontade de Deus, deixa de lado todas as
formas de viciações, de inércia, de titubeações, para se integrar, de
uma vez para sempre, no sistema que leva a criatura ao Criador de um
modo eficiente.
Assim como a ovelha transviada ouve a voz de seu pastor, Maria de
Betânia ouviu a voz do Mestre apregoando em sua cidade e anunciando o
reino de Deus. Como decorrência decidiu palmilhar o caminho por ele
ensinado, todo ele entrecortado de promessas vivas de um Pai generoso e
bom que não quer a perda de nenhuma de suas ovelhas, e que através dos
ensinos propiciados pela parábola do filho pródigo, deseja que todas as
ovelhas voltem para o redil, para que um dia, no decurso dos séculos,
haja um só rebanho e um só pastor, em cujo seio imperará a paz, a
concórdia, a fraternidade e o amor em suas expressões mais sublimadas, e
onde reinará a certeza de que não haverá mais quedas e que todas as
lágrimas serão enxugadas.