(Sociedade de Montreuil-Sur-Mer, 5 de janeiro de 1865)
Quando
se considera que tudo vem de Deus e retorna a Deus, é impossível não
perceber, na generalidade das criações divinas, o laço que as une entre
si e as sujeita a um trabalho de avanço comum, ao mesmo tempo que a um
trabalho de progresso particular. Também não se pode desconhecer que a
lei de solidariedade daí resultante não nos obriga a sacrifícios
gratuitos de toda sorte, uns para com os outros. Além do mais, é de
notar-se que Deus nos mostrou em tudo uma primeira aplicação dos
princípios primordiais por ele estabelecidos. Assim, pela solidariedade,
encontra-se esse princípio expresso na sensibilidade de que fomos
dotados, sensibilidade que nos leva a compartilhar dos males alheios, a
lhes ter piedade e a aliviá-los.
Isto
não é tudo. Os profetas e o divino messias Jesus deram-nos o exemplo de
uma segunda aplicação do princípio de solidariedade, inicialmente
consagrando-a através de cerimônias simbólicas, e mais frequentemente
pela autoridade de seus ensinamentos, o amor do homem pelo homem;
depois, proclamando como um dever necessário e vigoroso a prática da
caridade, que é a expressão da solidariedade. A caridade é o ato de
nossa submissão à lei de Deus; é o sinal de nossa grandeza moral; é a
chave do céu. Assim, é da caridade que vos quero falar. Encará-la-ei
apenas sob um aspecto: o lado material, e a razão disto é simples: é o
lado que menos agrada ao homem.
Nem
os cristãos nem os espíritas negaram o princípio, ou melhor, a lei da
solidariedade, mas procuraram subtrair-lhe as consequências, e para isto
invocaram mil pretextos. Citarei alguns deles.
As
coisas do espírito ou do coração, dizem, tendo um preço infinitamente
superior ao das coisas materiais, segue-se que consolar aflições, por
boas palavras ou por sábios conselhos, vale infinitamente mais que
consolar por socorros materiais. Seguramente, senhores, tendes razão se a
aflição de que falais tem uma causa moral; se encontra sua razão numa
ferida do coração; mas se for a fome, se for o frio, se for uma doença;
se, numa palavra, forem causas materiais que a provocaram, vossas sábias
palavras bastarão para minimizá-la? Permitireis que eu duvide disso. Se
Deus, colocando-vos na Terra, tivesse esquecido de prover o alimento
para o vosso corpo, teríeis encontrado o seu equivalente nos socorros
espirituais que ele vos concede? Mas Deus não é o homem. Deus é a
sabedoria eterna e a bondade infinita. Ele vos impôs um corpo de lama,
mas proveu às necessidades desse corpo fertilizando os vossos campos e
fecundando os tesouros da Terra; aos socorros espirituais que se
dirigiam à vossa alma, juntou os socorros materiais reclamados por vosso
corpo. Desde então, e porque o egoísmo talvez tenha despojado o pobre
de sua herança terrena, com que direito vos julgais quites para com ele?
Porque a justiça humana o excluiu do número dos usufrutuários dos bens
temporais, vossa caridade não encontraria uma justiça mais equitativa
para lhe fazer?
Um
ilustre pensador deste século não temia assim exprimir-se na sua
memorável profissão de fé: “Cada abelha tem direito à porção de mel
necessária à sua subsistência, e se, entre os homens, a alguns falta o
necessário, é que a justiça e a caridade desapareceram de seu meio.” Por
mais excessiva que vos possa parecer esta linguagem, ela não deixa de
conter uma grande verdade, verdade talvez incompreensível para o
entendimento de muitos entre vós, mas evidente para nós, Espíritos que,
mais tocados pelos efeitos, porque os abraçamos em seu conjunto, vemos
assim as causas que os produzem.
Ah!
diz este, ninguém mais que eu lamenta as penas e as privações cruéis do
verdadeiro pobre, do pobre cujo trabalho, insuficiente para a
manutenção da família, não lhe traz, em troca das fadigas, nem a alegria
de nutrir os seus, nem a esperança de torná-los felizes; mas eu
considerava um caso de consciência encorajar, por cegas liberalidades, a
preguiça ou a má conduta em farrapos. Aliás, considero a caridade como
indispensável à salvação do homem; somente a impossibilidade de
descobrir as necessidades reais entre tantas necessidades simuladas
parece-me justificar a minha abstenção.
A
impossibilidade de descobrir as necessidades reais, tal é, meu amigo, a
vossa justificação. Vede, entretanto, que essa justificativa jamais
será sancionada por vossa consciência e não quero outra prova além da
vossa confissão, porque, do direito que teria o verdadeiro pobre à vossa
esmola, ─ e reconheceis esse direito ─ desse direito, digo eu, decorre
para vós o dever de procurá-lo. Vós o procurais? A impossibilidade vos
detém. É evidente! A caridade não tem limites, ela é infinita como Deus,
de onde emana, e não admite qualquer impossibilidade! Sim, algo vos
detém: é o egoísmo, e Deus, que sonda a razão e o coração, Deus o
descobrirá facilmente sob os falaciosos pretextos com que o velais.
Podeis enganar o mundo, conseguireis enganar momentaneamente a vossa
consciência, mas nunca enganareis Deus. Em cem anos, em mil anos,
aparecereis novamente na Terra; sem dúvida aí vivereis, despojados de
vossa opulência presente e curvados ao peso da indigência. Eu vos
declaro, então, que recebereis do rico o desdém e a indiferença que vós
mesmos, outrora ricos, tiverdes demonstrado pelo pobre. Diz-se que a
nobreza obriga; a solidariedade obriga ainda mais. Quem se subtrai a
essa lei perde todos os seus benefícios. Eis por que vós, que tiverdes
alimentado o fundo egoísta de vossa natureza, sofrereis, por vossa vez, o
desprezo do egoísmo.
Escutai estas palavras de Rousseau:
“Para
mim, sei que todos os pobres são meus irmãos e que não posso, sem uma
inescusável dureza, recusar-lhes o fraco socorro que me pedem. Na
maioria são vagabundos, concordo; mas conheço bem as penas da vida para
ignorar por quantas desgraças o homem honesto pode encontrar-se reduzido
em sua sorte. E como poderia eu estar certo de que o desconhecido que
me vem implorar assistência em nome de Deus não é esse homem honesto,
prestes a perecer de miséria, e que minha recusa vai reduzir ao
desespero? Quando a esmola que se lhes dá não for para eles um socorro
real, é ao menos um testemunho de que se participa de suas penas, um
abrandamento da dureza da recusa, uma espécie de saudação que se lhes
faz.”(Grifo do blog)
É
um filho de Genebra, senhores, que fala da sorte; é um filósofo saciado
nas fontes secas do século dezoito que teme desconhecer o homem honesto
entre os desconhecidos que lhe estendem a mão, e que dá a todos. Ele dá
a todos porque todos são seus irmãos: ele o sabe! Sabeis menos do que
ele, senhores? Não ouso acreditar.
Mas,
em que medida deveis dar, ou melhor, qual é nos vossos bens a parte que
vos pertence e a que pertence aos pobres? Vossa parte, senhores, é o
necessário, nada mais que o necessário, e não é preciso que exagereis.
Em vão vos prevalecereis de vossa posição, dos encargos dela
decorrentes, das obrigações de luxo que ela exige. Tudo isto diz
respeito ao mundo, e se quereis viver para o mundo, não avançareis senão
com o mundo, não ireis mais depressa que o mundo. Em vão, ainda,
alegareis, para justificar vossos hábitos de moleza, um trabalho ao qual
não se entrega o pobre, e que, praticado em vossa casa e por vós, vos
torna beneficiários de maior comodidade. Em vão alegareis isto, porque
todo homem é votado ao trabalho, para si ou para outros, porque todo
homem é votado ao trabalho, para si ou para os outros, porque a incúria
de seu vizinho não o absolveria do abandono em que ele o teria deixado.
Do
vosso patrimônio, como do vosso trabalho, não vos é permitido retirar
senão uma coisa em vosso proveito: o necessário. O resto cabe aos
pobres. Esta é a lei. Não nego que esta lei comporte, em certos casos e
em dadas circunstâncias, temperamentos; no entanto, diante da luz,
diante da verdade, diante da justiça divina, ela não comporta mais isso.
E
a família, que será dela? Estamos quites com ela pelo fato de termos
socorrido aqueles a quem chamamos de pobres? Não, evidentemente,
senhores, porque, do momento em que reconheceis a necessidade de vos
despojar pelos pobres, trata-se de fazer uma escolha e estabelecer uma
hierarquia. Ora, vossas mulheres e vossos filhos são os vossos primeiros
pobres; a ele deveis, pois, dar as vossas primeiras esmolas. Velai pelo
futuro de vossos filhos; preocupai-vos em lhes preparar dias calmos e
tranquilos em meio a esse vale de lágrimas; deixai-lhes até em depósito
uma pequena herança que lhes permita continuarem o bem que haveis
começado: isto é legítimo. Entretanto, não lhes ensineis jamais a viver
egoisticamente e a olhar como deles o que é de todos. Antes e depois
deles, os autores de vossos dias, aqueles que vos alimentaram e
guardaram, aqueles que protegeram vossos primeiros passos e guiaram
vossa adolescência, vosso pai e vossa mãe, têm direito à vossa
solicitude. Depois vêm as almas que Deus vos deu como vossos irmãos
segundo a carne; depois os amigos de coração; depois todos os pobres, a
começar pelos mais miseráveis.(Grifo do Blog)
Vós
o vedes, eu vos concedo temperamentos, estabeleço uma hierarquia
conforme os instintos do vosso coração. Evitai, entretanto, favorecer
demasiado a uns, com exclusão de outros. É pela partilha equitativa dos
vossos benefícios que mostrareis vossa sabedoria, e é ainda por essa
partilha equitativa que cumprireis a lei de Deus em relação aos vossos
irmãos, que é a lei da solidariedade.
Diz Lamennais que “A justiça é a vida; a caridade também é a vida, mas uma vida mais bela e mais doce.”
Sim, a caridade é uma bela e doce vida, é a vida dos santos, é a chave do Céu.
LACORDAIRE
Fonte: revista espírita de 1865