Nota - Um médium do Havre evocou o Espírito de pessoa dele conhecida,
que respondeu: - "Quero comunicar-me, porém não posso vencer o
obstáculo existente entre nós. Sou forçado a deixar que se aproximem
estes infelizes sofredores." Seguiu-se então a seguinte comunicação
espontânea:
"Estou num medonho abismo! Auxilia-me... Oh! meu Deus! quem me tirará
deste abismo? Quem socorrerá com mão piedosa o infeliz tragado pelas
ondas? Por toda parte o marulho das vagas, e nem uma palavra amiga que
me console e ajude neste momento supremo. Entretanto, esta noite
profunda é bem a morte com seus horrores, quando eu não quero morrer!...
Oh! meu Deus! não é a morte futura, é a passada! Estou para sempre
separado dos que me são caros... Vejo o meu corpo, e o que há pouco
sentia era apenas a lembrança da angustiosa separação... Tende piedade
de mim, vós que conheceis o meu sofrimento; orai por mim, pois não quero
mais sentir as lacerações da agonia, como tem acontecido desde a noite
fatal!... Ê essa, no entanto, a punição, bem a pressinto... Conjuro-vos a
orar!... Oh! o mar... o frio... vou ser tragado pelas ondas!...
Socorro!... Tende piedade; não me repilais! Nós nos salvaremos os dois
sobre esta tábua!... Oh! afogo-me! As vagas vão tragar-me sem que aos
meus reste o consolo
de me tornarem a ver... Mas não! que vejo? meu corpo balouçado pelas
ondas... As preces de minha mãe serão ouvidas... Pobre mãe! se ela
pudesse supor seu filho tão miserável como realmente o é, decerto
pediria mais; acredita, porém, que a morte santificou o passado e
chora-me como mártir e não como infeliz castigado!... Oh! vós que o
sabeis, sereis implacáveis? Não, certo intercedereis por mim. François
Bertin." (1)
(1) Nota da Editora (FEB) à 21ª edição, em 1973: O Espírito, na
página anterior, foi designado pelo nome Ferdinand, exatamente como no
original. Consultamos diversas edições francesas (páginas 324/5),
inclusive a 4ª, de 1869.
Desconhecido inteiramente esse nome, não sugeria sequer à memória do
médium uma vaga lembrança, pelo que supôs fosse de algum desgraçado
náufrago que se lhe viesse manifestar espontaneamente, como sucedia
várias vezes. Mais tarde soube ser, efetivamente, o nome de uma das
vítimas da grande catástrofe marítima ocorrida nessas paragens a 2 de
dezembro de 1863. A comunicação foi dada a 8 do mesmo mês, 6 dias,
portanto, depois do sinistro. O indivíduo perecera fazendo tentativas
inauditas para salvar a equipagem e no momento em que se julgava ao
abrigo da morte. Não tendo qualquer parentesco com o médium, nem mesmo
conhecimento, por que se teria manifestado a este em vez de o fazer a
qualquer membro da família? É que os Espíritos não encontram em todas as
pessoas as condições fluídicas imprescindíveis à manifestação. Este, na
perturbação em que estava, nem mesmo tinha a liberdade da escolha,
sendo conduzido instintiva e atrativamente para este médium, dotado, ao
que parece, de aptidão
especial para as comunicações deste gênero. Também é de supor que
pressentisse uma simpatia particular, como outros a encontraram em
idênticas circunstâncias. A família, estranha ao Espiritismo, talvez
infensa mesmo a esta crença, não teria acolhido a manifestação como esse
médium.
Posto que a morte remontasse a alguns dias, o Espírito lhe
experimentava ainda todas as angústias. Evidente, portanto, que não
tinha consciência da situação; acreditava-se vivo, lutando com as ondas,
mas ao mesmo tempo se referindo ao corpo como se dele estivesse
separado; grita por socorro, diz que não quer morrer e fala logo após da
causa da sua morte, reconhecendo nela um castigo.
Toda essa incoerência denota a confusão das idéias, fato comum em quase todas as mortes violentas.
Dois meses mais tarde, a 2 de fevereiro de 1864, o Espírito de novo
se comunicou espontaneamente pelo mesmo médium, dizendo-lhe o seguinte:
"A piedade que tivestes dos meus tão horríveis sofrimentos
aliviou-me. Compreendo a esperança, entrevejo o perdão, mas depois do
castigo da falta cometida. Sofro continuamente, e, se por momentos
permite Deus que eu entreveja o fim da minha desventura, devo-o às
preces de caridosas almas apiedadas da minha situação. Oh! esperança,
raio celeste, quão bendita és quando te sinto despontar-me na alma!...
Mas, oh! o abismo escancara-se, o terror e o sofrimento absorvem o
pensamento de misericórdia. A noite, sempre a noite!... a água, o bramir
das ondas que me tragaram, são apenas pálida imagem do horror em que se
envolve o meu Espírito... Fico mais calmo quando posso permanecer junto
de vós, pois assim como a confidência de um segredo ao peito amigo nos
alivia, assim a vossa piedade motivada pela confidência da minha
penúria, acalma o sofrimento e dá repouso ao meu Espírito...
"Fazem-me bem as vossas preces, não me as recuseis. Não quero
reapossar-me desse hórrido sonho que se transforma em realidade quando o
vejo... Tomai o lápis mais vezes. Muito me aliviará o comunicar
convosco."
Dias depois, numa reunião espírita em Paris, dirigiram-se a este
Espírito as seguintes perguntas, por ele englobadas numa única
comunicação e mediante outro médium. na forma abaixo.
Eis as perguntas:
Quem vos levou a comunicar espontaneamente pelo outro médium? De que tempo datava a vossa morte quando vos manifestastes?
Quando o fizestes parecíeis duvidar ainda do vosso estado, ao mesmo
tempo que externáveis angústias de uma morte horrível: tendes agora
melhor compreensão dessa situação?
Dissestes positivamente que a vossa morte era uma expiação: podereis dizer-nos o motivo dessa afirmativa?
Isso constituirá ensinamento para nós e ser-vos-á um alívio. Por uma
confissão sincera fareis jus à misericórdia de Deus, a qual
solicitaremos em nossas preces.
Resposta. - Em primeiro lugar parece impossível que uma criatura
humana possa sofrer tão cruelmente. Deus! Como é penoso ver-se a gente
constantemente envolta nas vagas em fúria, provando incessante este
suplício, este frio glacial que sobe ao estômago e o constringe!
"Mas, de que serve entreter-vos com tais cenas? Não devo eu começar
por obedecer às leis da gratidão, agradecendo-vos a vós todos que vos
interessastes pelos meus tormentos? Perguntastes se me manifestei muito
tempo depois da morte?
"Não posso responder facilmente. Refletindo, avaliareis em que
situação horrível estou ainda. Penso que para junto do médium fui
trazido por força estranha à minha vontade e - coisa inexplicável -
servia-me do seu braço com a mesma facilidade com que me sirvo neste
momento do vosso, persuadido de que ele me pertencesse. Agora
experimento mesmo um grande prazer, como que um alívio particular,
que... mas ah! ei-lo que vai cessar. Mas, meu Deus! terei forças para
fazer a confissão que me cumpre?"
Depois de ser muito animado, o Espírito ajuntou: -"Eu era muito
culpado, e o que mais me tortura é ser tido por mártir, quando em
verdade o não fui... Na precedente existência eu mandara ensacar várias
vítimas e atirá-las ao mar... Orai por mim!"
Comentário de S. Luís a esta comunicação
Esta confissão trará grande alívio ao Espírito, que efetivamente foi
bem culpado! Honrosa, porém, foi a existência que vem de deixar: - era
amado e estimado de seus chefes. Essa circunstância era o fruto do seu
arrependimento e das boas resoluções que tomou antes de voltar à Terra,
onde, tanto quanto fora cruel, desejara ser humano. O devotamento que
demonstrou era uma reparação, sendo-lhe porém preciso resgatar as
passadas faltas por uma expiação final - a da morte que teve. Ele mesmo
quis purificar-se pelo sofrimento das torturas que a outros infligira, e
reparai que uma idéia o persegue: o pesar de ser tido como mártir. Será
tomada em consideração essa humildade. Enfim, ele deixou o caminho da
expiação para entrar no da reabilitação, no qual por vossas preces
podereis sustentá-lo, fazendo que o trilhe a passo mais firme e
resoluto.