Questões e problemas
(Revista Espírita, setembro de 1863)
SOBRE A EXPIAÇÃO E A PROVA
Moulins, 8 de julho de 1863.
Senhor e venerado mestre,
Venho
submeter à vossa apreciação uma questão que foi discutida em nosso
pequeno grupo e não pudemos resolver por nossas próprias luzes. Os
próprios Espíritos que consultamos não responderam muito categoricamente
para nos tirar da dúvida.
Redigi
uma pequena nota, que tomo a liberdade de vos remeter, na qual reuni os
motivos de minha opinião pessoal, que difere da de vários colegas. A
opinião destes últimos é que a expiação ocorre efetivamente durante a
encarnação, apoiando-se no fato de que essa expressão foi empregada em
muitas comunicações, e notadamente no Livro dos Espíritos.
Venho,
pois, vos pedir a extrema bondade de nos dar a vossa opinião sobre essa
questão. Vossa decisão para nós será lei, e de boa vontade cada um
sacrificará sua maneira de ver, para colocar-se sob a bandeira que
plantastes e sustentais de maneira tão firme e tão sábia.
Recebei, senhor e caro mestre, etc.
T. T.
“Várias comunicações dadas por Espíritos diferentes qualificam indistintamente comoexpiações e provas, males e tribulações que formam o quinhão de cada um de nós durante a encarnação na Terra.
Dessa
aplicação à mesma ideia, de duas palavras muito diversas na sua
significação, resulta uma certa confusão, sem dúvida pouco importante
para os Espíritos desmaterializados, mas que, entre os encarnados, dá
lugar a discussões que seria bom fazer cessar por uma definição clara e
precisa e explicações fornecidas pelos Espíritos superiores que
fixariam, de modo irrevogável, esse ponto de doutrina.
“Para começar, tomando os dois vocábulos no sentido absoluto, parece que a expiaçãoseria
o castigo, a pena imposta para o resgate de uma falta, com o perfeito
conhecimento, por parte do culpado punido, da causa do castigo, isto é,
da falta a expiar. Compreende-se que, neste sentido, a expiação seja
sempre imposta por Deus.
“A prova não
implica qualquer ideia de reparação. Ela pode ser voluntária ou
imposta, mas não é a consequência rigorosa e imediata das faltas
cometidas.
“A
prova é um meio de constatar o estado de uma coisa, para reconhecer se é
de boa qualidade. Assim, submete-se a uma prova uma corda, uma ponte,
uma peça de artilharia, não por causa de seu estado anterior, mas para
certificar-se de que estão adequadas ao serviço a que se destinam.
“Assim, por extensão, tem-se chamado de provas da vida ao conjunto
de meios físicos ou morais que revelam a existência ou ausência das
qualidades da alma que estabelecem a sua perfeição ou os progressos por
ela feitos na busca dessa perfeição final.
“Parece, pois, lógico admitir que a expiação propriamente
dita, e no sentido absoluto do vocábulo, ocorre na vida espiritual,
após a desencarnação ou morte corpórea; que ela possa ser mais ou menos
longa, mais ou menos penosa, de acordo com a gravidade das faltas, mas
que é completa no outro mundo e termina sempre por um ardente desejo de
ter uma nova reencarnação, durante a qual as provas escolhidas ou
impostas deverão permitir que a alma faça um progresso para a perfeição
que as faltas anteriores lhe impediram de realizar.
“Assim, pois, não conviria admitir que há expiação na
Terra, mesmo que excepcionalmente, porque seria preciso admitir,
também, o conhecimento das faltas punidas. Ora, tal conhecimento só
existe na vida de além-túmulo. A expiação sem tal conhecimento seria uma barbárie sem utilidade e não se conformaria nem com a justiça nem com a bondade de Deus.
“Durante a encarnação, não se pode conceber senão provas, porque, sejam quais forem os males e tribulações desta Terra, é impossível considerá-los como podendo constituir umaexpiação suficiente
para faltas de qualquer gravidade. Pensa-se que um culpado, entregue à
justiça dos homens, estaria bem punido se o condenassem a viver como o
menos feliz de nós?
Não exageremos, pois, a importância dos males desta Terra para nos atribuirmos o mérito de havê-los suportado. A prova consiste
mais na maneira pela qual os males foram suportados do que na sua
intensidade que, como a felicidade terrena, é sempre relativa para cada
indivíduo.
“Os caracteres distintivos da expiação e da prova são
que a primeira é sempre imposta, e sua causa deve ser conhecida por
aquele que a sofre, ao passo que a segunda pode ser voluntária, isto é,
escolhida pelo Espírito, ou mesmo imposta por Deus, na falta de escolha.
Além disso, ela se concebe muito bem sem causa conhecida, pois não é
necessariamente a consequência de faltas passadas.
“Numa palavra: a expiação cobre o passado; a prova abre o futuro.
“O número de julho da Revista Espírita contém um artigo intitulado Expiação terrena, que pareceria contrário à opinião emitida acima. Contudo, lendo-o atentamente, ver-se-á que aexpiação verdadeira se deu na vida espírita, e que a posição que Max ocupou na sua última encarnação realmente não é senão o gênero de provas que
ele escolheu, ou que lhe foram impostas, e das quais saiu vitorioso,
mas que, durante toda essa encarnação, ignorando sua posição anterior,
ele não poderia em nada aproveitar uma expiação sem objetivo.
“Talvez
esta seja mais uma questão de palavras que de princípios. Com efeito,
foi dito muitas vezes: “Não vos atenhais às palavras; vede o fundo do
pensamento.” Em todo o caso, para nós que nos entendemos por meio de
palavras, convém estarmos bem fixados no sentido que a elas ligamos.”
Resposta. A
distinção estabelecida pelo autor da nota acima, entre o caráter da
expiação e o das provas é perfeitamente justa. Contudo, não poderíamos
partilhar de sua opinião no que concerne à aplicação desta teoria à
situação do homem na Terra.
A
expiação implica necessariamente a ideia de um castigo mais ou menos
penoso, resultado de uma falta cometida. A prova implica sempre a de uma
inferioridade real ou presumível, porque o que chegou ao ponto
culminante a que aspira, não mais necessita de provas.
Em
certos casos, a prova se confunde com a expiação, isto é, a expiação
pode servir de prova, e reciprocamente. O candidato que se apresenta
para receber uma graduação, passa por uma prova. Se falhar, terá que
recomeçar um trabalho penoso. Esse novo trabalho é a punição da
negligência no primeiro. A segunda prova se torna, assim, uma expiação.
Para
o condenado a quem se faz esperar um abrandamento ou uma comutação, se
se conduzir bem, a pena é ao mesmo tempo uma expiação por sua falta e
uma prova para sua sorte futura. Se, à sua saída da prisão, não estiver
melhor, sua prova é nula e um novo castigo conduzirá a uma nova prova.
Agora,
se considerarmos o homem na Terra, veremos que ele aí suporta males de
toda sorte, e por vezes cruéis. Esses males têm uma causa. Ora, a menos
que os atribuamos ao capricho do Criador, somos forçados a admitir que a
causa está em nós mesmos, e que as misérias que experimentamos não
podem ser resultado de nossas virtudes. Então elas têm sua fonte nas
nossas imperfeições.
Se
um Espírito encarnar-se na Terra em meio à fortuna, às honras e a todos
os prazeres materiais, poder-se-á dizer que sofre a prova do
arrastamento. Para aquele que cai na desgraça por sua conduta ou sua
imprevidência, é a expiação de suas faltas atuais, e pode-se dizer que é
punido por onde pecou. No entanto, o que dizer daquele que, desde seu
nascimento, está a braços com necessidades e privações; que arrasta uma
existência miserável e sem esperança de melhora; que sucumbe ao peso de
enfermidades congênitas, sem ter ostensivamente nada feito para
merecer tal sorte? Quer seja uma prova, quer uma expiação, a posição
não é menos penosa e não seria mais justa do ponto de vista do nosso
correspondente, porque se o homem não se lembra da falta, também não se
lembra de haver escolhido a prova. Assim, há que buscar alhures a
solução da questão.
Como
todo efeito tem uma causa, as misérias humanas são efeitos que devem
ter uma causa. Se essa causa não estiver na vida atual, deve estar numa
vida anterior. Além disso, admitindo a justiça de Deus, tais efeitos
devem ter uma relação mais ou menos íntima com os atos precedentes, dos
quais eles são, ao mesmo tempo, castigo para o passado e prova para o
futuro. São expiações no sentido de que são consequência de uma falta, e
provas em relação ao proveito delas tirado. Diz-nos a razão que Deus
não pode ferir um inocente. Logo, se somos feridos e se não somos
inocentes, o mal que sentimos é o castigo, e a maneira de suportá-lo é a
prova.
Mas,
acontece muitas vezes que a falta não se acha nesta vida. Então
acusa-se a justiça de Deus, nega-se a sua bondade, duvida-se, até, de
sua existência. Aí, precisamente, está a prova mais escabrosa: a dúvida
sobre a Divindade. Quem quer que admita um Deus soberanamente justo e
bom deve dizer que ele só agirá com sabedoria, mesmo naquilo que não
compreendamos, e que se sofremos uma pena, é porque fizemos por merecer.
É, pois uma expiação.
Pela
grande lei da pluralidade das existências, o Espiritismo levanta
completamente o véu sob o qual essa questão deixava obscuridade. Ele nos
ensina que se a falta não tiver sido cometida nesta vida, tê-lo-á sido
em outra, e que assim a justiça de Deus segue o seu curso, punindo-nos
por onde havíamos pecado.
Vem
a seguir a grave questão do esquecimento que, segundo o nosso
correspondente, tira aos males da vida o caráter de expiação. É um erro.
Dai-lhe o nome que quiserdes, mas não fareis que não sejam a
consequência de uma falta. Se o ignorais, o Espiritismo vo-lo ensina.
Quanto
ao esquecimento das faltas em si, ele não tem as consequências que lhe
atribuís. Temos demonstrado alhures que a lembrança precisa dessas
faltas teria inconvenientes extremamente graves, porque isso nos
perturbaria e nos humilharia aos nossos próprios olhos e aos do próximo;
porque traria uma perturbação nas relações sociais e porque, por isso
mesmo, entravaria o nosso livre-arbítrio.
Por
outro lado, o esquecimento não é tão absoluto quanto o supõem. Ele só
se dá na vida exterior de relação, no próprio interesse da Humanidade,
mas a vida espiritual não sofre solução de continuidade. Tanto na
erraticidade quanto nos momentos de emancipação, o Espírito se lembra
perfeitamente, e essa lembrança lhe deixa uma intuição que se traduz na
voz da consciência, que o adverte do que deve ou não deve fazer. Se ele
não a escuta, então é culpa sua. Além disso, o Espiritismo dá ao homem
um meio de remontar ao seu passado, senão aos atos precisos, ao menos
aos caracteres gerais desses atos que ficaram mais ou menos desbotados
na sua vida atual. Pelas tribulações que suporta, expiações ou provas,
ele deve concluir que foi culpado. Pela natureza dessas tribulações,
ajudado pelo estudo de suas tendências instintivas, e apoiando-se no
princípio de que a mais justa punição é a consequência da falta, ele
pode deduzir seu passado moral. Suas tendências más lhe ensinam o que
resta de imperfeito a corrigir em si. A vida atual é para ele um novo
ponto de partida. Ele aí chega rico ou pobre de boas qualidades,
basta-lhe, pois, estudar-se a si mesmo para ver o que lhe falta, e dizer
para si mesmo: “Se sou punido, é porque pequei.” E a própria punição
lhe dirá o que fez.
Citemos uma comparação.
Suponhamos
um homem condenado a tantos anos de trabalhos forçados, e aí sofrendo
um castigo especial, mais ou menos rigoroso, conforme à sua falta;
suponhamos, ainda, que ao entrar na prisão ele perca a lembrança dos
atos que para lá o conduziram. Não poderá ele dizer para si mesmo: “Se
estou na prisão, é que fui culpado, pois não se condena gente virtuosa,
portanto, tratemos de nos tornarmos bom, para não voltarmos quando daqui
sairmos.” Quer ele saber o que fez? Estudando a lei penal, saberá quais
os crimes que para ali conduzem, porque não se é posto a ferros por uma
estroinice; da duração e da severidade da pena, concluirá o gênero dos
que deve ter cometido. Para ter uma ideia mais exata, terá apenas que
estudar aqueles para os quais ele se sente instintivamente arrastado.
Saberá, então, o que daí em diante deverá evitar para
conservar a liberdade, e a isso será ainda excitado pelas exortações dos
homens de bem, encarregados de instruí-lo e de guiá-lo no bom caminho.
Se ele não tira proveito disso, sofrerá as consequências. Tal a situação
do homem na Terra onde, como o grilheta, não pode ter sido posto por
suas perfeições, desde que é infeliz e obrigado a trabalhar. Deus lhe
multiplica os ensinamentos proporcionais ao seu adiantamento. Adverte-o
incessantemente e o fere, até, para despertá-lo de seu torpor. Aquele
que persiste no endurecimento não pode desculpar-se com a ignorância.
Em
resumo, se certas situações da vida humana têm, mais particularmente, o
caráter das provas, outras incontestavelmente têm o do castigo, e todo
castigo pode servir de prova.
É
um erro pensar que o caráter essencial da expiação seja o de ser
imposta. Vemos diariamente na vida expiações voluntárias, sem falar dos
monges que se maceram e se fustigam com a disciplina e o cilício. Assim,
nada há de irracional em admitir que um Espírito na erraticidade
escolha ou solicite uma existência terrena que o leve a reparar seus
erros passados. Se tal existência lhe tivesse sido imposta, não teria
sido menos justa, malgrado a ausência momentânea da lembrança, pelos
motivos acima desenvolvidos. As misérias daqui são, pois, expiação, por
seu lado efetivo e material, e provas, por suas consequências morais.
Seja qual for o nome que se lhes dê, o resultado deve ser o mesmo: o
melhoramento. Em presença de um objetivo tão importante, seria pueril
fazer uma questão de princípio de uma questão de palavra. Isto provaria
que se liga mais importância às palavras do que à coisa.
Temos
prazer de responder às perguntas sérias e de elucidá-las, quando
possível. A discussão é tanto mais útil com pessoas de boa-fé, que
estudaram e querem aprofundar as coisas, pois é trabalhar para o
progresso da ciência, quanto é ociosa com os que julgam sem conhecimento
e querem saber sem se darem ao trabalho de aprender.
Crédito: IPEAK
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