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A questão
das origens tem sempre o condão de despertar a curiosidade e, sob tal
ponto de vista, aquilo que se refere ao homem a desperta tanto mais
quanto é impossível a toda criatura sensata aceitar ao pé da letra o
relato bíblico, bem como deixar de nele ver uma dessas alegorias de que é
pródigo o estilo oriental. Aliás, a Ciência vem fornecer-lhe a prova ao
demonstrar, pelos meios menos contestáveis, a impossibilidade material
da formação do globo em seis dias de vinte e quatro horas. Ante a
evidência dos fatos escritos em caracteres irrefutáveis nas camadas
geológicas, teve a Igreja que submeter-se à opinião dos sábios e
concordar com eles que os seis dias da criação representam períodos de
uma extensão indeterminada, como ela fez outrora, em relação ao
movimento da Terra. Se, pois, é o texto bíblico suscetível de
interpretação sob esse ponto capital, também poderá sê-lo em relação a
outros pontos, notadamente sobre a época do aparecimento do homem na
Terra, sobre a sua origem e sobre o sentido que deve ser emprestado à
qualificação de anjos decaídos.
Como
o princípio das coisas está nos segredos de Deus, que não no-lo revela
senão à medida que o julga adequado, ficamos reduzidos a conjeturas.
Muitos sistemas foram imaginados para resolver essa questão, e até hoje
nenhum satisfez completamente à razão. Nós também vamos tentar levantar
uma ponta do véu. Seremos mais felizes que nossos antecessores? Não o
sabemos. Só o futuro decidirá. A teoria que apresentamos é, pois, uma
opinião pessoal, entretanto parece-nos em concordância com a razão e com
a lógica. É isso o que aos nossos olhos lhe dá um certo grau de
probabilidade.
Para
começar, constatamos ser impossível descobrir qualquer parcela da
verdade, a não ser com o auxílio da teoria espírita. Ela já resolveu uma
porção de problemas até agora insolúveis, e é com a ajuda das balizas
que ela nos oferece que tentaremos remontar ao curso dos tempos. O
sentido literal de certas passagens dos livros sagrados, contraditado
pela Ciência, repelido pela razão, produziu muito mais incrédulos do que
se pensa, dada a obstinação aplicada em fazer daquilo um artigo de fé.
Se uma interpretação racional fizer com que seja aceita, evidentemente
reaproximará da Igreja os que dela se afastaram.
Antes
de prosseguir, é essencial nos entendamos a respeito dos vocábulos.
Quantas querelas não deveram a sua eternização senão à ambiguidade de
certas expressões, que cada um tomava no sentido de suas ideias
pessoais! Isto ficou demonstrado em O Livro dos Espíritos, a propósito do vocábulo alma. Dizendo claramente em que acepção a tomávamos, cortamos cerce qualquer controvérsia. O vocábulo anjo está
no mesmo caso: empregam-no indiferentemente, no bom e no mau sentido,
dizendo: “os anjos bons e os maus, o anjo da luz e o anjo das trevas”,
donde se segue que, na acepção geral, ele apenas significa Espírito. Evidentemente é nesse último sentido que deve ser entendido, ao se falar de anjos decaídos e de anjos rebeldes. Conforme
a Doutrina Espírita, nisto concorde com muitos teólogos, os anjos não
são seres de criação privilegiada, isentos de trabalho imposto aos
outros, por um favor especial, mas Espíritos chegados à perfeição por
esforços e méritos próprios. Se os anjos fossem seres criados perfeitos,
sendo a revolta contra Deus um sinal de inferioridade, aqueles que se
revoltaram não poderiam ser anjos. Também nos diz a Doutrina que os
Espíritos progridem, mas não retrogradam, porque jamais perdem as
qualidades adquiridas. Ora, a rebelião por parte de seres perfeitos
seria uma retrogradação, porquanto ela só se concebe partindo de seres
ainda atrasados.
Para evitar qualquer equívoco, conviria reservar a expressão anjos para os Espíritos puros e chamar os demais apenas Espíritos bons ou maus. Mas, como o uso consagrou essa expressão em relação aos anjos decaídos, nós
dizemos que a tomamos na sua acepção geral. Ver-se-á que nesse sentido a
ideia de queda e de rebelião é perfeitamente admissível.
Não
conhecemos e talvez jamais venhamos a conhecer o ponto de partida da
alma humana. Tudo quanto sabemos é que os Espíritos são criados simples e
ignorantes; que progridem intelectual e moralmente; que em virtude do
livre-arbítrio, uns tomaram o bom caminho, outros um caminho errado; que
uma vez posto o pé no atoleiro, se afunda cada vez mais; que depois de
uma sequência ilimitada de existências corpóreas, realizadas na Terra e
em outros mundos, depuram-se e chegam à perfeição que os aproxima de
Deus.
Um
ponto de difícil compreensão é a formação dos primeiros seres vivos na
Terra, cada um em sua espécie, desde a planta até o homem. A teoria a
esse respeito exarada em O Livro dos Espíritos se nos afigura a
mais racional, embora só incompletamente e de modo hipotético ela
resolva esse problema, que reputamos insolúvel, tanto para nós quanto
para a maioria dos Espíritos aos quais não é dado penetrar o mistério
das origens. Se os interrogamos a tal respeito, os mais sábios dizem
ignorá-lo; outros, menos modestos, tomam a iniciativa e a postura de
reveladores e ditam sistemas, produto de suas ideias pessoais,
apresentando-os como a verdade absoluta. É contra a mania dos sistemas
de certos Espíritos, em relação ao princípio das coisas, que nos devemos
pôr em guarda. O que, aos nossos olhos, prova a sabedoria dos que
ditaram O Livro dos Espíritos é a reserva que souberam guardar
sobre questões dessa natureza. Em nossa opinião, não é prova de
sabedoria resolver essas questões de maneira absoluta, como fizeram
alguns, sem se inquietarem com impossibilidades materiais resultantes
dos dados fornecidos pela Ciência e pela observação. Aquilo que dizemos
acerca do aparecimento dos primeiros homens na Terra diz respeito à
formação dos corpos, porque, uma vez formado o corpo, é mais fácil
conceber que o Espírito venha tomar posse dele. Dados os corpos, o que
nos propomos examinar aqui é o estado dos Espíritos que os animaram, a
fim de chegar, se possível, a definir de modo mais racional do que se
tem feito até agora, a doutrina da queda dos anjos e do paraíso perdido.
Se
não admitirmos a pluralidade das existências corpóreas, temos que
admitir que a alma é criada ao mesmo tempo que se forma o corpo, porque,
uma de duas: ou a alma que anima o corpo ao nascer já viveu, ou não
viveu ainda. Entre essas duas hipóteses não há meio-termo. Ora, da
segunda hipótese ─ de que a alma não tenha vivido ─ decorre uma porção
de problemas insolúveis, tais como a diversidade de aptidões e de
instintos, incompatíveis com a justiça de Deus; a sorte das crianças que
morrem em tenra idade; a dos cretinos, dos idiotas, etc., ao passo que
tudo se explica naturalmente, se se admitir que a alma já viveu e que,
ao encarnar-se em novo corpo, traz o que havia adquirido anteriormente.
Assim é que as Sociedades progridem gradativamente; sem isto, como
explicar a diferença existente entre o presente estado social e o dos
tempos de barbárie? Se as almas fossem criadas ao mesmo tempo que os
corpos, as que hoje nascem seriam absolutamente novas e tão primitivas
quanto as que viviam há milhares de anos. Acrescente-se que entre elas
não haveria qualquer conexão, nenhuma relação necessária; seriam
completamente independentes umas das outras. Por que, então, as almas de
hoje seriam melhor aquinhoadas por Deus que as criadas anteriormente?
Por que então compreendem melhor? Por que têm instintos mais apurados e
costumes mais suaves? Por que têm a intuição de certas coisas sem as
haverem aprendido? Desafiamos à solução desse impasse, a menos que se
admita que Deus tenha criado almas de diversas qualidades, conforme os
tempos e os lugares, proposição essa inconciliável com a ideia de uma
soberana justiça. Dizei, ao contrário, que as almas de hoje já viveram
em épocas remotas; que foram bárbaras como o seu século, mas que
progrediram; que para cada nova existência trazem as aquisições das
existências anteriores e que, consequentemente, as almas dos tempos
civilizados não foram criadas mais perfeitas, mas que se aperfeiçoaram
por si mesmas com o tempo, e tereis, assim, a única explicação plausível
para a causa do progresso social.
Estas considerações, tiradas da teoria da reencarnação, são essenciais para a compreensão de um fato de que falaremos a seguir.
Embora
possam os Espíritos encarnar-se em diferentes mundos, parece que, em
geral, realizam um certo número de migrações no mesmo globo e no mesmo
meio, a fim de melhor aproveitarem a experiência adquirida; não saem
desse meio senão para um pior, por punição, ou para um melhor, como
recompensa. Disso resulta que, durante um certo período, a população do
globo é, com pequenas variações, composta dos mesmos Espíritos, que aí
reaparecem em diversas épocas, até atingirem um grau de depuração que
lhes permita a transferência para mundos mais adiantados.
Conforme
o ensino dado pelos Espíritos superiores, essas emigrações e imigrações
dos Espíritos encarnados na Terra ocorrem de tempos em tempos,
individualmente; mas, em certas épocas, realizam-se em massa, por força
das grandes revoluções que fazem desaparecerem quantidades inumeráveis
deles, sendo substituídos por outros Espíritos que sobre a Terra, ou sobre uma parte da Terra, constituem uma nova geração.
O Cristo
disse uma coisa notável que não foi compreendida, como, aliás, muitas
outras passagens tomadas ao pé da letra, quando sempre falava por
imagens e parábolas. Anunciando os grandes acontecimentos no mundo
físico e no mundo moral, disse ele: “Na verdade vos digo que não passará
esta geração sem que se cumpram todas estas coisas”[1].
Ora, a geração do tempo do Cristo passou há mais de dezoito séculos,
sem que essas coisas tivessem sido cumpridas. Disso devemos concluir ou
que o Cristo se enganou, o que é inadmissível, ou que suas palavras
tinham um sentido oculto, que foi mal interpretado.
Se,
porém, nos reportarmos ao que dizem os Espíritos, não apenas a nós, mas
pelos médiuns de todos os países, estaremos próximos da realização dos
tempos preditos, de uma época de renovação social, isto é, de uma época
dessas grandes emigrações dos Espíritos que habitam a Terra. Que os
tendo enviado para cá, a fim de se melhorarem, Deus os deixou aqui o tempo necessário para progredirem. Deu-lhes
a conhecer as suas leis, primeiro por Moisés, depois pelo Cristo;
advertiu-os pelos profetas; em suas reencarnações sucessivas eles
puderam aproveitar tais ensinamentos; agora os tempos são chegados, e
aqueles que não aproveitaram as luzes, os que violaram a lei de Deus e
desconheceram o seu poder, irão deixar a Terra onde, de agora em diante,
estariam deslocados do meio pelo progresso moral que se realiza e ao
qual só trariam entraves, quer como homens, quer como Espíritos. A
geração da qual falava o Cristo não poderia ser entendida como a dos
homens que viviam em seu tempo, fisicamente falando, mas deveria
entender-se como a geração dos Espíritos que na Terra percorreram os
diversos períodos de suas reencarnações e que irão deixá-la. Eles serão
substituídos por uma nova geração de Espíritos que, moralmente mais
adiantados, farão reinar entre si a lei do amor e da caridade ensinada
pelo Cristo e cuja felicidade não será perturbada pelo contado dos maus,
dos orgulhosos, dos egoístas, dos ambiciosos e dos ímpios.
Segundo
o que dizem os Espíritos, parece mesmo que entre as crianças que agora
nascem, muitas são reencarnações de Espíritos dessa nova geração. Quanto
aos da antiga geração que tiverem méritos, mas que, apesar de tudo, não
tiverem atingido um suficiente grau de depuração para chegarem a mundos
mais adiantados, poderão continuar a habitar a Terra e aqui passar por
mais algumas encarnações. Mas então, em vez de estarem em processo de
punição, isto será uma recompensa, pois aqui serão mais felizes e em
constante progresso. O tempo em que desaparece uma geração
de Espíritos para dar lugar a outra pode ser considerado como o fim do
mundo, isto é, do mundo moral.
Em
que serão convertidos os Espíritos expulsos da Terra? Os próprios
Espíritos nos dizem que eles irão habitar mundos novos, onde encontrarão
seres ainda mais atrasados que os daqui, aos quais terão que fazer
progredir, transmitindo-lhes o produto dos conhecimentos adquiridos.
O contato
do meio bárbaro em que estarão ser-lhes-á uma expiação cruel e uma
fonte de incessantes padecimentos físicos e morais, dos quais terão
tanto mais consciência quanto maior for o desenvolvimento de sua
inteligência. Mas essa expiação será, ao mesmo tempo, uma missão que
lhes oferecerá meios de resgatar seu passado, conforme a maneira pela
qual a desempenharem. Aí sofrerão uma série de reencarnações, durante um
período mais ou menos longo, no fim do qual os que tiverem merecido
serão retirados para mundos melhores, talvez para a própria Terra, que
será, então, um recanto de felicidade e de paz, enquanto que os da Terra
subirão, pouco a pouco, até o estado de anjos ou puros Espíritos.
Isto
é muito demorado, dirão alguns. Não seria melhor ir de uma vez da Terra
para o Céu? Sem dúvida, mas com tal sistema tendes a alternativa de ir,
também em massa, da Terra para o Inferno, por toda a eternidade. Ora,
haveis de concordar que, sendo aqui em baixo muito rara a soma de
virtudes necessárias para ir diretamente da Terra para o Céu, poucos
homens poderiam ter certeza de possuí-las. Disso resulta que há mais
probabilidades de irem para o Inferno do que para o Paraíso. Não vale
mais a pena fazer uma caminhada mais longa, mas com a certeza de atingir
o objetivo? No estado atual da Terra ninguém se preocupa de a ela
voltar, mas nada a isto obriga, porque depende de cada um progredir de
tal modo, enquanto aqui se encontra, que possa merecer uma promoção.
Nenhum prisioneiro, saindo do cárcere, pensa em voltar para ele, e o
meio é muito simples. Basta não cair em nova falta. Também o soldado
acharia muito cômodo tornar-se marechal rapidamente, entretanto, é
preciso que faça essa conquista.
Remontemos
ao curso dos tempos, e do presente, como ponto conhecido, procuremos
deduzir o desconhecido, ao menos por analogia, embora sem a certeza de
uma demonstração matemática.
A
questão de Adão, como tronco único da espécie humana na Terra, é muito
controvertida, como se sabe, porque as leis da Antropologia lhe
demonstram a impossibilidade, sem falar dos documentos autênticos da
história chinesa, que provam que a população do globo remonta a uma
época muito anterior à que a cronologia bíblica assinala para Adão.
Então a história de Adão é um conto da carochinha? Não é provável. É uma
figura que, como todas as alegorias, deve encerrar uma grande verdade,
cuja chave só será dada pelo Espiritismo. A questão principal, a nosso
ver, não é saber se o personagem Adão existiu realmente, nem em que
época viveu, mas se a raça humana, designada como sua posteridade, é uma
raça decaída. A solução desta questão não é vazia de conteúdo moral,
porque, esclarecendo-nos quanto ao nosso passado, pode orientar a nossa
conduta para o futuro.
Notemos,
de saída, que a ideia de queda aplicada ao homem é uma insensatez,
quando separada da reencarnação, do mesmo modo que a responsabilidade
que carregássemos pela falta de nosso primeiro pai. Se a alma de cada
homem é criada ao nascer, é que não existia antes. Assim, não terá
qualquer relação, direta ou indireta, com a que cometeu a primeira
falta. Então surge a pergunta: como pode ela ser responsável por isso? A
dúvida sobre tal ponto conduz naturalmente à dúvida e mesmo à
incredulidade sobre muitos outros, pois se falso é o ponto de partida,
falsas devem ser, também, as consequências. Tal o raciocínio de muita
gente. Ora! Tal raciocínio cairá se considerarmos o espírito, e não a
letra do texto bíblico, e se nos reportarmos aos princípios da Doutrina
Espírita, destinados, conforme foi dito, a reanimar a fé que se
extingue.
Notemos,
ainda, que a ideia dos anjos rebeldes, dos anjos decaídos, do paraíso
perdido, se acha em quase todas as religiões e no estado de tradição
entre quase todos os povos. Ela deve, pois, assentar-se numa verdade.
Para compreender o verdadeiro sentido que deve ser ligado à qualificação
de anjos rebeldes, não é necessário supor uma luta real entre Deus e os anjos ou Espíritos, de vez que o vocábulo anjo é
aqui tomado numa acepção geral. Admitindo-se que os homens sejam
Espíritos encarnados, que são os materialistas e os ateus senão anjos ou
Espíritos em revolta contra a Divindade, pois que negam a sua
existência e nem reconhecem o seu poder nem as suas leis? Não é por
orgulho que pretendem que tudo aquilo de que são capazes vem deles
próprios e não de Deus? Não é o cúmulo da rebelião pregar o nada depois
da morte? Não são muito culpados os que se servem da inteligência, de
que se vangloriam, para arrastar os seus semelhantes para o precipício
da incredulidade? Até certo ponto não praticam um ato de revolta aqueles
que, sem negar a Divindade, desconhecem os verdadeiros atributos de sua
essência? Os que se cobrem com a máscara da piedade para o cometimento
de ações más? Aqueles cuja fé no futuro não os desliga dos bens deste
mundo? Os que em nome de um Deus de paz violentam a primeira de suas
leis: a lei da caridade? Os que semeiam a perturbação e o ódio pela
calúnia e pela maledicência? Enfim, aqueles cuja vida voluntariamente
inútil se escoa na inatividade, sem proveito para si próprios nem para
os seus semelhantes? A todos serão pedidas contas, não só do mal que
tiverem feito, mas do bem que tiverem deixado de fazer. Ora! Todos esses
Espíritos que empregaram tão mal as suas encarnações, uma vez expulsos
da Terra e enviados a mundos inferiores, entre populações ainda na
infância da barbárie, que serão senão anjos decaídos, remetidos à
expiação? Não será para eles a Terra que deixam um paraíso perdido, em
comparação com o meio ingrato onde ficarão relegados durante milhares de
séculos, até o dia em que tiverem merecido a libertação?
Se
remontamos, agora, à origem da raça atual, simbolizada na pessoa de
Adão, encontramos todos os caracteres de uma geração de Espíritos
expulsos de outro mundo e exilados, por causas semelhantes, na Terra já
povoada, mas por homens primitivos, mergulhados na ignorância e na
barbárie, e que eles tinham por missão fazê-los progredir, trazendo para
o seu meio as luzes de uma inteligência já desenvolvida. Não é,
realmente, o papel até aqui desempenhado pela raça adâmica? Relegando-a
para esta terra de trabalho e de sofrimento, não teria Deus razão para
dizer: “Tu extrairás o teu pão com o suor de teu rosto?” Se ela mereceu
tal castigo por causas semelhantes às que vemos hoje, não será justo
dizer que se perdeu por orgulho? Na sua mansuetude não lhe poderia
prometer que lhe enviaria um salvador, isto é, aquele que deveria
iluminar o caminho a seguir para alcançar a felicidade dos eleitos? Esse
salvador foi enviado na pessoa do Cristo, que ensinou a lei do amor e
da caridade, como a verdadeira âncora de salvação.
Aqui
se apresenta uma consideração importante. A missão do Cristo é
facilmente compreendida admitindo-se que se trata dos mesmos Espíritos,
que viveram antes e depois de sua vinda, e que assim puderam tirar
proveito de seus ensinamentos, ou do mérito de seu sacrifício; mas já é
mais difícil de compreender, sem a reencarnação, a utilidade desse mesmo
sacrifício em prol de Espíritos criados posteriormente à sua vinda e que, assim, Deus teria criado manchados por faltas daqueles com os quais não tinham qualquer relação.
Essa
raça de Espíritos parece ter completado o seu tempo na Terra. Dentre
eles, alguns aproveitaram o seu tempo e progrediram, e por isso
mereceram recompensa; outros, por sua obstinação em fechar os olhos à
luz, esgotaram a mansuetude do Criador e mereceram castigo. Assim
cumprir-se-á a palavra do Cristo: “Os bons ficarão à minha direita e os
maus à minha esquerda”.
Um
fato parece apoiar a teoria que atribui uma preexistência aos primeiros
habitantes dessa raça na Terra: É que Adão, tido como o tronco, é
representado com um desenvolvimento intelectual imediato muito superior
ao das raças selvagens atuais; que os seus primeiros descendentes em
pouco tempo mostraram aptidão para trabalhos de arte muito adiantados.
Ora, o que sabemos do estado dos Espíritos em sua origem indica o que
teria sido Adão, do ponto de vista intelectual, se sua alma tivesse sido
criada ao mesmo tempo que o seu corpo. Admitindo que, por exceção, Deus
lhe tivesse dado uma alma já mais perfeita, restaria explicar por que
os selvagens da Nova-Holanda, por exemplo, se saem do mesmo tronco, são
infinitamente mais atrasados que o pai comum. Ao contrário, tudo prova,
pelo físico e pelo moral, que pertencem a outra raça de Espíritos, mais
próximos de sua origem, e que ainda necessitam de um grande número de
migrações corpóreas antes de atingirem os graus menos avançados da raça
adâmica. A nova raça que vai surgir, fazendo reinar por toda parte a lei
do Cristo, que é a lei de justiça, de amor e de caridade, apressará o
seu adiantamento. Os que escreveram a história da Antropologia terrestre
apegaram-se sobretudo aos caracteres físicos; o elemento espiritual foi
quase sempre negligenciado e é invariavelmente negado pelos escritores
que nada admitem fora da matéria. Quando este for levado em conta no
estudo das ciências, lançará uma luz nova sobre uma porção de problemas
ainda obscuros, porque o elemento espiritual é uma das forças vivas da
Natureza, que desempenha um papel preponderante nos fenômenos físicos,
tanto quanto nos fenômenos morais.
Vejamos,
resumidamente, um exemplo de chocante analogia com o que se passa, em
escala maior, no mundo dos Espíritos, e que nos ajudará a compreendê-lo.
A 24 de maio de 1861 a fragata Iphigénie desembarcou
na Nova Caledônia uma companhia disciplinar composta de 291 homens. O
comandante da colônia baixou, à sua chegada, a seguinte ordem do dia:
“Ao desembarcar nesta terra distante, já compreendestes o papel que vos está reservado.
“A
exemplo de nossos bravos marinheiros, que servem aos vossos olhos, vós
nos ajudareis a levar com brilho, para o meio das tribos selvagens da
Nova Caledônia, o facho da civilização. Pergunto-vos: não é uma bela e
nobre missão? Vós a desempenhareis dignamente.
“Escutai a voz e os conselhos dos vossos chefes. Eu estou à testa deles. Que as minhas palavras sejam bem entendidas.
“A
escolha do vosso comandante, dos vossos oficiais, dos vossos
suboficiais e cabos é uma garantia segura de todos os esforços que serão
tentados para fazer de vós excelentes soldados; direi mais, para vos
elevar à altura de bons cidadãos e vos transformar em colonos honrados,
se assim o quiserdes.
“Vossa
disciplina é severa e deve sê-lo. Posta em nossas mãos, sabei-o, será
firme e inflexível, mas também justa e paternal, saberá distinguir o
erro do vício e da degradação...”
Temos
aqui homens que, por seu mau comportamento, foram expulsos de um país
civilizado e, como castigo, enviados para um meio bárbaro. Que lhes
disse o chefe? “Infringistes as leis do vosso país; fostes causa de
desordem e de escândalo e de lá fostes expulsos. Mandam-vos para cá. Mas
podeis resgatar o vosso passado; pelo trabalho podeis conquistar aqui
uma posição honrosa e vos tornardes cidadãos honestos. Tendes aqui uma
bela missão a cumprir, a de trazer a civilização a estas tribos
selvagens. A disciplina será severa, mas justa, e saberemos distinguir
os que se conduzirem bem.”
Para
aqueles homens relegados ao seio da selvageria, a mãe pátria não é um
paraíso perdido por sua culpa e por sua rebelião contra a lei? Nessa
terra longínqua não são anjos decaídos? A linguagem do chefe não é a que
Deus dirigiu aos Espíritos exilados na Terra? “Desobedecestes às minhas
leis. Por isto vos expulsei do país onde poderíeis viver felizes e em
paz. Aqui sereis condenados ao trabalho. Mas podereis, por vossa
conduta, merecer o perdão e reconquistar a pátria que perdestes por
vossa culpa ─ o Céu.”
À
primeira vista, a ideia da queda parece em contradição com o princípio
de que os Espíritos não podem retrogradar. E necessário, porém,
considerar que não se trata de um retorno ao estado primitivo. Posto que
numa posição inferior, nada perde o Espírito daquilo que adquiriu. Seu
desenvolvimento moral e intelectual é o mesmo, seja qual for o meio em
que se ache colocado. Ele está na situação de um homem do mundo,
condenado às galés por seus crimes. Certamente é um decaído, do ponto de
vista social, mas não se torna mais estúpido nem mais ignorante.
Iremos
supor que esses homens mandados à Nova Caledônia irão se transformar
subitamente em modelos de virtude? Que irão de repente abjurar todos os
erros do passado? Fora necessário não conhecer a Humanidade para
admiti-lo. Pela mesma razão, os Espíritos que serão expulsos da Terra,
uma vez instalados nos mundos de exílio, não se despojarão subitamente
do orgulho e dos baixos instintos. Durante muito tempo conservarão as
tendências de sua origem, um resto do velho fermento. O mesmo deve ter
acontecido aos Espíritos da raça adâmica, exilados na Terra. Ora, não
está aí o pecado original? A mancha que trazem ao nascer é a da raça de
Espíritos culpados e punidos a que pertencem, mancha que podem apagar
pelo arrependimento, pela expiação e pela renovação de sua personalidade
moral. Considerado como responsabilidade por uma falta cometida por
outrem, o pecado original é uma insensatez e a negação da justiça de
Deus. Ao contrário, considerado como consequência e remanescente de
imperfeição inicial do indivíduo, não só a razão o admite, mas se
considera de plena justiça a responsabilidade dela decorrente.
Essa
interpretação dá uma razão de ser absolutamente natural ao dogma da
imaculada conceição, do qual tanto zombou o ceticismo. Esse dogma
estabeleceu que a mãe de Cristo não era manchada pelo pecado original.
Como pode ser isso? Muito simples: Deus enviou um Espírito puro, que não
pertencia à raça culpada e exilada, para se encarnar na Terra e
desempenhar a sua augusta missão, do mesmo modo que, de tempos em
tempos, envia Espíritos superiores que se encarnam a fim de darem um
impulso no progresso, acelerando-o. Na Terra tais Espíritos são como o
venerável pastor que vai moralizar os condenados em suas prisões e lhes
mostrar o caminho da salvação.
Por
certo algumas pessoas acharão essa interpretação pouco ortodoxa.
Algumas, até, a taxarão de herética. Mas não é certo que muitos não veem
no relato da Gênesis, na história da maçã e na costela de Adão uma
simples imagem? Que não podendo ligar um sentido preciso à doutrina dos
anjos decaídos, dos anjos rebeldes e do paraíso perdido, consideram tudo
isso simples fábulas? Se uma interpretação lógica os leva a ver uma
verdade disfarçada sob a alegoria, não é melhor que a negação absoluta?
Admitamos
que essa interpretação não seja, sob todos os pontos de vista, conforme
a mais rigorosa ortodoxia, no sentido vulgar do termo: perguntamos se
será preferível não acreditar absolutamente em coisa alguma do que
acreditar nalguma coisa. Se a crença no texto literal afasta de Deus, e
se a crença por força da interpretação dele aproxima, esta não vale mais
que aquela? Não vimos, pois, destruir o princípio, podá-lo pela base,
como fizeram alguns filósofos. Procuramos descobrir-lhe o sentido oculto
e vimos, ao contrário, consolidá-lo e dar-lhe uma base racional. Como
quer que seja, não se poderá negar a essa interpretação um caráter
grandioso que, na verdade, falta ao texto literal. Essa teoria abarca,
ao mesmo tempo, a universalidade dos mundos, o infinito no passado e no
futuro; dá a todos a sua razão de ser pelo encadeamento de todas as
coisas, pela solidariedade que estabelece entre todas as partes do
Universo. Não é ela mais conforme à ideia que fazemos da majestade e da
bondade de Deus, do que aquela que circunscreve a Humanidade a um ponto
no espaço e a um instante na eternidade?
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Caros amigos leitores , gostaríamos, na medida do possível ,contar com a interação de todos ,através de comentários , tornando se seguidores deste blog divulgando para seus conhecidos ,para que assim possamos estudar e aprendermos juntos , solidários e fraternos. Inscrevam-se no blog!
domingo, 1 de junho de 2014
Ensaio de interpretação da doutrina dos anjos decaídos-Revista Espírita 1862
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