Subsídio para Estudo da questão 59 do livro dos Espíritos
O Paraíso Perdido (1)
13. CAPÍTULO II _ 9. Ora, o Senhor Deus plantara
desde o começo um jardim delicioso, no qual pôs o homem que ele formara.
_ O Senhor Deus também fizera sair da terra toda espécie de árvores
agradáveis à vista e cujos frutos eram agradáveis ao paladar e, no meio
do paraíso, a árvore da vida, com a árvore da ciência do bem e do mal.
(Ele fez sair, Jeová Eloim, da terra ("mim haadama") toda árvore
agradável à vista e boa para comer-se e a árvore da vida ("vehetz
hachayim") no meio do jardim e a árvore da ciência do bem e do mal).
15. O Senhor tomou, pois, o homem e o colocou no
paraíso das delícias, a fim de que o cultivasse e guardasse. _ 16.
Deu-lhe também esta ordem e lhe disse: Come de todas as árvores do
paraíso. (Ele ordenou, Jeová Eloim, ao homem ("halhaadam") dizendo: De
toda árvore do jardim podes comer). _ 17. Mas, não comas nunca o fruto
da árvore da ciência do bem e do mal; portanto, logo que o comeres
morrerás com toda a certeza. (E da árvore do bem e do mal "oumehetz
hadaat tob vara") não comerás, pois que no dia em que dela comeres
morrerás).
14. CAPÍTULO III _ 1. Ora, a serpente era o mais
astuto de todos os animais que o Senhor Deus formara na Terra. E ela
disse à mulher: Por que vos ordenou Deus que não comêsseis os frutos de
todas as árvores do paraíso? (E a serpente ("nâhàsch") era mais astuta
do que todos os animais terrestres que Jeová Eloim havia feito; ela
disse à mulher ("el haischa"): Terá dito Eloim: Não comereis de nenhuma
árvore do jardim?). 2. A mulher respondeu: Comemos dos frutos de todas
as árvores que estão no paraíso. (Disse ela, a mulher, à serpente, do
fruto ("miperi") das árvores do jardim podemos comer). _ 3. Mas, quanto
ao fruto da árvore que está no meio do paraíso, Deus nos ordenou que não
comêssemos dele e que não lhe tocássemos, para que não corramos o
perigo de morrer. _ 4. A serpente replicou à mulher: Certamente não
morrereis. _ 5. Mas, é que Deus sabe que, assim que houverdes comido
desse fruto, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses, conhecendo o
bem e o mal.
6. A mulher considerou, então, que o fruto daquela
árvore era bom para comer; que era belo e agradável à vista. E, tomando
dele, o comeu e o deu a seu marido, que também comeu. (Ela viu, a
mulher, que ela era boa, a árvore como alimento, e que era desejável a
árvore para compreender ("leaskil"), e tomou de seu fruto, etc.
8. E como ouvissem a voz do Senhor Deus, que passeava
à tarde pelo jardim, quando sopra um vento brando, eles se retiraram
para o meio das árvores do paraíso, a fim de se ocultarem de diante da
sua face. _ 9. Então o Senhor Deus chamou Adão e lhe disse: Onde estás? _
10. Adão lhe respondeu: Ouvi a tua voz no paraíso e tive medo, porque
estava nu, essa a razão por que me escondi. _ 11. O Senhor lhe retrucou:
E como soubeste que estavas nu, senão por que comeste o fruto da árvore
da qual eu te proibi que comesses? _ 12. Adão lhe respondeu: A mulher
que me deste por companheira me apresentou o fruto dessa árvore e eu
dele comi. _ 13. O Senhor Deus disse à mulher: Por que fizeste isso? Ela
respondeu: A serpente me enganou e eu comi desse fruto.
14. Então, o Senhor Deus disse à serpente: Por teres
feito isso, serás maldita entre todos os animais e todas as bestas da
terra; rojar-te-ás sobre o ventre e comerás a terra por todos os dias de
tua vida. _ 15. Porei uma inimizade entre ti e a mulher, entre a sua
raça e a tua. Ela te esmagará a cabeça e tu tentarás morder-lhe o
calcanhar.
16. Deus disse também à mulher: Afligir-te-ei com
muitos males durante a tua gravidez: darás à luz com dor; estarás sob a
dominação de teu marido e ele te dominará.
17. Disse em seguida a Adão: Por haveres escutado a
voz de tua mulher e haveres comido do fruto da árvore de que te proibi
que comesses, a terra te será maldita por causa do que fizeste e só com
muito trabalho tirarás dela com que te alimentes, durante toda a tua
vida. _ 18. Ela te produzirá espinhos e sarças e te alimentarás com a
erva da terra. _ 19. E comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até
que voltes à terra donde foste tirado, porque és pó e em pó te tornarás.
20. E Adão deu à sua mulher o nome de Eva, que significa a vida, porque ela era a mãe de todos os viventes.
21. O Senhor Deus também fez para Adão e sua mulher vestiduras de peles com que os cobriu.
22. E disse: Eis aí Adão feito um de nós, sabemos o
bem e o mal. Impeçamos, pois, agora, que ele deite mão à árvore da vida,
que também tome o seu fruto e que, comendo desse fruto, viva
eternamente. (Ele disse, Jeová Eloim: Eis aí, o homem foi como um de nós
para o conhecimento do bem e do mal; agora ele pode estender a mão e
tomar da árvore do bem e do mal; agora ele pode estender a mão e tomar
da árvore da vida ("veata pen ischlachyado velaakch mechetz hachanyim");
comerá dela e viverá eternamente).
(1) Paraíso,
do latim "paradisus", do grego "paradeisos", jardim, vergel, lugar
plantado de árvores. A palavra hebraica empregada na Gênese é "hagan",
que tem a mesma significação.
Em seguida a alguns versículos damos a tradução
literal do texto hebraico, o que torna mais fiel a explicação do
pensamento primitivo. O sentido alegórico assim é ressaltado mais
claramente.
O Paraíso Perdido23. O Senhor Deus o fez sair do jardim de delícias, a fim de que fosse trabalhar no cultivo da terra donde ele fora tirado. _ 24. E, tendo-o expulsado, colocou querubins (1) diante do jardim de delícias, os quais faziam brilhar uma espada de fogo, para guardar o caminho que conduzia à árvore da vida.
(1) Do hebreu "cherub", "keroub", boi, "charab", lavrar; anjos do segundo coro da primeira hierarquia, os quais eram representados com quatro asas, quatro faces e pés de boi.
15. Sob uma imagem pueril e por vezes ridícula, se nos detivermos na forma, a alegoria esconde freqüentemente as maiores verdades. Haverá fábula mais absurda, à primeira vista, que a de Saturno, um deus que devorava pedras, tomando-as por seus filhos? Porém, ao mesmo tempo, que encontramos de mais profundamente filosófico e verdadeiro, que essa figura, se procurarmos seu sentido moral! Saturno é a personificação do tempo; sendo todas as coisas a obra do tempo, ele é o pai de tudo o que existe; mas também, tudo se destrói com o tempo. Saturno devorando as pedras é o emblema da destruição, pelo tempo dos corpos os mais duros que são seus filhos, pois que eles se formaram com o tempo. E quem escapa a essa destruição, segundo a mesma alegoria? Júpiter, o emblema da inteligência superior, do princípio espiritual que é indestrutível. Essa imagem é mesmo tão natural, que, na linguagem moderna, sem alusão à Fábula antiga, se diz de uma coisa deteriorada, que ela foi devorada pelo tempo, derruída, devastada pelo tempo.
Toda a mitologia pagã, na realidade, não passa de um vasto quadro alegórico dos diversos lados bons e maus da humanidade. Para os que procuram seu espírito, é um curso completo da mais alta filosofia tal como sucede com nossas fábulas modernas. O absurdo seria tomar a forma pelo fundo.
16. O mesmo sucede com a Gênese, onde é preciso enxergar as grandes verdades morais sob figuras materiais, as quais, tomadas ao pé da letra, seriam tão absurdas, como em nossas fábulas, se tomássemos ao pé da letra as cenas e os diálogos atribuídos aos animais.
Adão é a personificação da humanidade; sua falta individualiza a fraqueza do homem, no qual predominam os instintos materiais aos quais não sabe resistir. (1)
A árvore, como árvore da vida, é o emblema da vida espiritual; como árvore da ciência é a da consciência que o homem adquire, do bem e do mal, mediante o desenvolvimento de sua inteligência e do livre-arbítrio em virtude do qual ele escolhe entre os dois; marca o ponto em que a alma do homem, cessando de ser guiada somente por seus instintos, toma posse de sua liberdade e incorre na responsabilidade de seus atos.
O fruto da árvore é o emblema do objetivo dos desejos materiais do homem; é a alegoria da cobiça e da concupiscência; resume sob uma mesma imagem os motivos de arrastamento ao mal; comer o fruto é sucumbir à tentação. Ele cresce no meio do jardim das delícias para mostrar que a sedução está no meio dos prazeres, e fazer lembrar que se o homem concede preponderância aos gozos materiais, prende-se à terra e afasta-se de seu destino espiritual. (2)
A morte da qual foi ameaçado, para o caso de que ele afrontasse a proibição que lhe era feita, é uma advertência para as conseqüências inevitáveis, físicas e morais, que decorrem da violação das leis divinas que Deus gravou em sua consciência. É bem evidente que aqui não se trata da morte corporal, pois, que, depois de sua falta, Adão viveu ainda por muito tempo, mas sim da morte espiritual, ou em outras palavras, da perda dos bens que resultam do progresso moral, perda cuja expulsão do jardim de delícias é a imagem.
(1) Hoje é bem reconhecido que a palavra hebraica "haadam" não é um nome próprio, e que seu significado é: "o homem em geral, a humanidade", o que destrói toda a estrutura erguida sobre a personalidade de Adão.
(2) Em nenhum texto, o fruto é indicado como "a maçã"; esta palavra só se encontra nas versões infantis. A palavra do texto hebreu é "peri", que tem os mesmos significados que em francês, sem especificação da espécie, e talvez possa ser tomado no sentido material, moral, alegórico, em sentido próprio e figurado. Entre os Israelitas, não há interpretação obrigatória; quando uma palavra tem diversas significações, cada um a compreende como quiser, desde que a interpretação não seja contrária à gramática. A palavra "peri" tem sido traduzida pelo latim "matum", que se refere à maçã e a todas as espécies de frutos. É derivado do grego "mélon", particípio do verbo "mélo", interessar, tomar cuidado, atrair.
O Paraíso Perdido
17. Hoje, a serpente muito se distancia de
personificar a astúcia; ela entra nesta narrativa, em relação à sua
forma, mais do que a seu caráter; é uma alusão à perfídia dos maus
conselhos que deslizam como a serpente, e dos quais, por esta razão,
freqüentemente não desconfiamos. Ao demais, se a serpente, por haver
enganado a mulher, foi condenada a arrastar-se sobre seu ventre, isso
poderia significar que antes possuía pernas, e neste caso não se
trataria de uma serpente. Por que, pois, impor à credulidade singela das
crianças, como verdades, alegorias tão evidentes se, falseando suas
apreciações, mais tarde se faz com que considerem a Bíblia como um
tecido de fábulas absurdas?
Ademais, é preciso notar que a palavra hebraica
"nâhâsch" traduzida pela palavra serpente, provém da radical "nâhâsch"
que significa: fazer encantamentos, adivinhar as coisas escondidas, e
pode significar: encantador, adivinho. Ela é encontrada com essa
significação, no Gênesis, cap. XLIV, versículos 5 e 15, a propósito da
taça que José fez esconder no saco de viagem de Benjamin: "A taça que
haveis roubado é aquela na qual meu Senhor bebeu, e da qual ele se serve
para adivinhar (nâhâsch (1)). _ Ignorais que não há ninguém que me
iguale na ciência de adivinhar? (nâhâsch)" _ No Livro dos Números, Cap.
XXIII, vers. 23: "Não há encantamentos (nâhâsch) em Jacó, nem adivinhos
em Israel." Por conseguinte, a palavra nâhâsch tomou também o
significado de serpente, réptil do qual os encantadores se serviam em
seus ritos. Não é senão na versão dos Setenta, que a palavra "nâhâsch"
foi traduzida por serpente; essa versão, segundo Hutcheson, apresenta o
texto hebreu corrompido em muitas passagens: foi escrita em grego no II
século antes da era cristã. As inexatidões dessa versão, sem dúvida, são
relativas às modificações que a língua hebraica sofreu em tal lapso de
tempo; pois o hebraico do tempo de Moisés já era então língua morta, que
diferia do hebraico vulgar tanto quanto o grego antigo e o árabe
literário do grego e do árabe moderno. (2).
É provável, pois, que Moisés tenha entendido, por
sedutor da mulher, o desejo indiscreto de conhecer as coisas escondidas,
suscitado pelo Espírito de adivinhação, o que está de acordo com o
sentido primitivo da palavra "nâhâsch", adivinhar; e, por outro lado,
com essas palavras: "Deus sabe que depois de comerdes deste fruto,
vossos olhos serão abertos, e vós sereis como deuses. _ Ela viu, a
mulher, que a árvore era desejável para compreender (léaskil), e ela
tomou de seu fruto. "Não se deve esquecer que Moisés queria proibir, de
entre os hebreus, a arte da adivinhação, usada entre os egípcios, como o
prova sua proibição de interrogar os mortos, e o Espírito de Piton ("O
Céu e o Inferno", segundo o Espiritismo, cap. XII).
18. A passagem onde se diz que: "O Senhor passeava
pelo paraíso, depois do meio-dia, quando se elevava um vento brando, "é
uma imagem ingênua e quase pueril, que a crítica não deixou de
assinalar; mas nada tem que deva causar surpresa, se nos reportarmos à
idéia que os hebreus dos tempos primitivos faziam da Divindade. Para
essas inteligências frustradas, incapazes de conceber abstrações, Deus
deveria revestir uma forma concreta e eles a relacionavam à humanidade
como ao único ponto conhecido. Moisés lhes falava como a crianças por
imagens sensíveis. No caso de que se trata, era a potência soberana
personificada, como os pagãos o faziam, sob figuras alegóricas, com as
virtudes, os vícios e as idéias abstratas. Mais tarde, os homens
despojaram a idéia da forma, tal como o menino, tornado adulto, procura o
senso moral nos contos que ouviu desde o berço. Portanto, é preciso
considerar essa passagem como uma alegoria da Divindade supervisando ela
mesma os objetos de sua criação. O grande rabino Wogue, assim o
traduziu: "Ouviram a voz do Eterno Deus, percorrendo o jardim, do lado
de onde vem o dia."
19. Se a falta de Adão fosse literalmente a de haver
comido um fruto, ela não poderia, por sua natureza quase pueril,
justificar o rigor com que foi atingida. Não se poderia tampouco admitir
que o fato fosse aquele que geralmente se supõe; a menos que Deus,
considerando tal fato como um crime irremissível, houvesse condenado a
sua própria obra, pois que ele havia criado o homem para a propagação da
espécie. Se Adão houvesse entendido assim a proibição de tocar no fruto
da árvore e com ela se houvesse conformado escrupulosamente, onde
estaria a Humanidade e que teria sido feito dos desígnios do Criador?
Deus não criara Adão e Eva para que permanecessem sós
na Terra; e a prova está nas palavras que lhe são dirigidas
imediatamente após sua formação, ainda quando estavam no paraíso
terrestre:
"Deus os abençoou e lhes disse: Crescei e
multiplicai-vos, enchei a terra e dominai-a." (Cap. I, vers. 28). Pois
que a multiplicação do homem era uma lei, desde o paraíso terrestre, sua
expulsão não pode ter como causa o fato suposto.
O que deu crédito a essa suposição, é o sentimento de
vergonha do qual Adão e Eva se sentiram tomados à vista de Deus, e que
os levou a se esconderem. Porém essa mesma vergonha é uma figura de
comparação: ela simboliza a confusão que todo culpado experimenta na
presença daquele a quem ofendeu.
(1) Isso demonstraria que a mediunidade pelo copo
d'água seria conhecida pelos egípcios? (Revue Spirite, junho de 1868,
pág. 161).
(2) A palavra "nâhâsch" existia na língua egípcia,
com o significado de negro, provavelmente porque os negros tinham o dom
do encantamento e da adivinhação. É talvez por isso que as esfinges, de
origem assíria, eram representadas com uma figura de negro.
O Paraíso Perdido
20. Qual é, pois, em definitivo, essa falta tão
grande que pode atingir com a reprovação perpétua todos os descendentes
daquele que a cometeu? Caim, o fratricida, não foi tratado tão
severamente. Nenhum teólogo pode defini-la logicamente, pois todos, não
abandonando a letra giraram num círculo vicioso.
Hoje, sabemos que tal falta não é um ato isolado,
pessoal, de um indivíduo, mas encerra, sob um fato único, alegórico, o
conjunto das prevaricações das quais se tornou culpada a humanidade
ainda imperfeita da Terra e que se resumem nessas palavras: infração à
lei de Deus. Eis porque a falta do primeiro homem, simbolizando a
humanidade, é figurada por um ato de desobediência.
21. Ao dizer a Adão que tirará seu sustento da terra,
com o suor do seu rosto, Deus simboliza a obrigação do trabalho; porém,
por que faz do trabalho uma punição? Que seria da inteligência do
homem, se ele não a desenvolvesse pelo trabalho? Que seria da terra, se
não fosse fecundada, transformada, amainada pelo trabalho inteligente do
homem?
Está dito: (Cap. II, vers. 5 e 7) "O Senhor Deus
ainda não havia feito chover sobre a terra, e não havia ainda o homem
para a trabalhar. O Senhor formou o homem com o limo da terra." Tais
palavras, juntadas a estas: Enchei a terra, provam que o homem era,
desde a sua origem, desti nado a ocupar toda a terra e a cultivá-la; e,
por outro lado, que o paraíso não era um lugar circunscrito a um canto
do globo. Se a cultura da terra devia ser uma conseqüência da falta de
Adão, daí teria resultado que, se Adão não houvesse pecado, a terra
teria ficado inculta, e as finalidades de Deus não se haveriam cumprido.
Por que diz ele à mulher que, devido a ela haver
cometido a falta, daria à luz com dores? Como pode a dor do parto ser
para ela um castigo, pois é uma conseqüência do organismo, e que tem
sido provado fisiologicamente que ela é necessária? Como uma coisa que é
segundo as leis da Natureza, pode ser uma punição? Isso os teólogos
ainda não explicaram, e não poderão fazê-lo enquanto não saírem do ponto
de vista em que se colocaram; e todavia essas palavras, que parecem ser
tão contraditórias, podem ser justificadas.
22. Para iniciar, observemos que, se no momento da
criação de Adão e Eva, sua alma tivesse sido tirada do nada, como alguns
ensinam, deviam ser leigos em todas as coisas; não deviam saber o que é
morrer. Desde que fossem os únicos sobre a Terra, enquanto viveram no
paraíso terrestre, não tinham visto ninguém morrer; como, pois, teriam
podido compreender em que consistia a ameaça de morte que Deus lhes
fazia? Como teria Eva podido compreender que dar à luz com dor seria uma
punição, pois, que, acabando de nascer para a vida, ela jamais tinha
tido filhos, tanto mais que era a única mulher do mundo?
As palavras de Deus, pois, nenhum sentido deveriam
ter para Adão e Eva. Apenas tirados do nada, não podiam saber, nem
porque, nem como haviam saído dali; não deviam entender o Criador, nem a
finalidade da proibição que lhes era feita. Sem nenhuma experiência das
condições da vida, pecaram como crianças que agem sem discernimento, o
que torna mais incompreensível ainda a terrível responsabilidade que
Deus fez pesar sobre eles e sobre a humanidade inteira.
23. Aquilo que é um impasse para a teologia, o
Espiritismo explica sem dificuldade, e de maneira racional, pela
anterioridade da alma e a pluralidade das existências, lei sem a qual
tudo é mistério e anomalia na vida do homem.
Com efeito, admitamos que Adão e Eva já houvessem
vivido, e tudo se encontra justificado: Deus não lhes fala como a
meninos, mas sim como a seres em estado de compreender,e que o
compreendem, prova evidente de que têm uma aquisição anterior de
conhecimento. Admitamos, ademais, que hajam vivido num mundo mais
adiantado e menos material que o nosso, onde o trabalho do Espírito
supria o trabalho do corpo; que por sua rebelião à lei de Deus, figurada
pela desobediência, houvessem sido excluídos e exilados como punição
sobre a Terra, onde o homem, por força da natureza do globo, está
adstrito a um trabalho corporal; Deus teria razão em lhes dizer:
"cultivareis a terra e dela tirareis vosso sustento, com o suor de vosso
rosto;" e à mulher: "Dareis à luz com dor", pois esta é a condição
deste mundo. (Cap. XI, ns. 31 e seguintes).
O paraíso terrestre, de que inutilmente se procuraram
os traços sobre a Terra, era pois a figura do mundo feliz onde Adão
havia vivido, ou antes, a raça dos Espíritos que ele personifica. A
expulsão do paraíso marca o momento no qual tais Espíritos vieram
encarnar-se entre os habitantes deste mundo, e a mudança de situação que
daí decorreu. O anjo armado com espada flamejante, que defende a
entrada do paraíso, simboliza a impossibilidade em que se encontram os
Espíritos dos mundos inferiores de penetrar nos mundos superiores antes
de o haver merecido, através de sua purificação. (Ver Cap. XIV, ns. 8 e
seguintes).
24. Caim, (depois da morte de Abel) respondeu ao
Senhor: _ Minha iniqüidade é demasiado grande para que eu possa obter
perdão. Vós me expulsais hoje de cima da Terra, e eu me irei ocultar da
vossa face. Irei fugitivo e vagabundo sobre a Terra, até que me encontre
alguém que me mate. _ O Senhor lhe respondeu: _ Não, isto não
acontecerá, pois quem quer que mate Caim, será por isso punido
severamente. _ E o Senhor colocou um sinal sobre Caim, para que os que o
encontrassem não o matassem.
Caim, tendo se retirado da face do Senhor, foi
vagabundear sobre a Terra, e habitou a região oriental do Éden. Aí
conheceu sua mulher; ela concebeu e deu à luz Enoque. Ele construiu
("vaïehi bônê", literalmente: ele estava construindo) uma cidade que
denominou Henoch (Enoquia) do nome de seu filho. (Cap. IV, vers. 13 a
16).
25. Se nos prendermos à letra da Gênese, eis a que
conseqüências chegamos: Adão e Eva estavam sozinhos no mundo após sua
expulsão do paraíso terrestre; não foi senão depois que tiveram filhos,
Caim e Abel. Ora, Caim tendo morto seu irmão e se retirado para outra
região, não tornou a ver mais seu pai e sua mãe, os quais de novo
ficaram sozinhos; não foi senão muito tempo depois, com a idade
de cento e trinta anos, que Adão teve um terceiro
filho, chamado Seth. Depois do nascimento de Seth, viveu ainda, segundo a
genealogia bíblica, oitocentos anos, e teve filhos e filhas.
Quando Caim veio se estabelecer no oriente do Éden,
não havia na Terra senão três pessoas: seu pai e sua mãe, e de seu lado,
ele sozinho. Entretanto, teve mulher e filho; quem poderia ser essa
mulher, e onde poderia ele tê-la tomado? O texto hebreu diz: estava
construindo uma cidade, e não, construiu, o que indica uma ação presente
e não ulterior; porém uma cidade supõe habitantes, pois não é de se
presumir que Caim a fizesse para si, sua mulher e seu filho, nem que ele
a pudesse construir sozinho.
É, pois, forçoso inferir-se de tal relato, que a
região era povoada; ora, não podia ser pelos descendentes de Adão, dos
quais não havia outro senão Caim.
A presença de outros habitantes ressalta igualmente
dessas palavras de Caim: "Serei fugitivo e vagabundo, e quem quer que me
encontre me matará", e da resposta que Deus lhe deu. Por quem ele
temeria ser morto, e qual seria o efeito do sinal que Deus colocou sobre
ele, se não devesse encontrar ninguém? Se, pois, havia sobre a Terra
outros homens além da família de Adão, é que ali já estavam antes dele;
do que se conclui, com os elementos do próprio texto da Gênese, que Adão
não é o primeiro, nem o único pai do gênero humano. (Cap. XI, nº 34).
(1)
26. Para lançar luz sobre todas as partes da Gênese
espiritual, foram necessários os conhecimentos que o Espiritismo trouxe,
demonstrando as relações entre o princípio espiritual e o princípio
material, a natureza da alma, sua criação no estado de simplicidade e
ignorância, sua união com o corpo, sua marcha progressiva indefinida
através de existências sucessivas, e através de mundos que são outros
tantos degraus na via do aperfeiçoamento, seu gradual livramento da
influência da matéria mediante o uso de seu livre-arbítrio, a causa de
suas inclinações boas ou más, assim como de suas aptidões, o fenômeno do
nascimento e da morte, o estado do Espírito na erraticidade, enfim, o
futuro que é o prêmio de seus esforços para sua melhoria e de sua
perseverança no bem.
Graças a esta luz, o homem sabe doravante de onde
vem, para onde vai, porque está sobre a Terra e porque sofre; sabe que
seu futuro está entre suas mãos, e que a duração de seu cativeiro aqui
embaixo depende dele. A Gênese, tirada da alegoria estreita e mesquinha,
lhe aparece grande e digna da majestade, da bondade e da justiça do
Criador. Considerada sob esse ponto de vista, a Gênese confundirá a
incredulidade e a vencerá.
(1) Não é nova esta concepção. La Peyrére, sábio
teólogo do século XVII, em seu livro "Preadamitas", escrito em latim e
publicado em 1655, tirou do texto original da Bíblia, alterado pelas
traduções, a prova clara de que a Terra era povoada antes de Adão. Esta é
a opinião atual de muitos eclesiásticos esclarecidos.
Livro Genese / Allan Kardec
Copyright 2004 - LAKE - Livraria Allan Kardec Editora
(Instituição Filantrópica) Todos os Direitos Reservados
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