Resgates coletivos
[...]Apelo urgente da Terra pedia auxílio para as vítimas de um desastre aviatório.
Sem alongar-se em minúcias, informou que a solicitação se repetiria,
dentro de alguns instantes, e conviria, esperar a fim de examinarmos o
assunto com a eficiência precisa.
Com efeito, mal terminara o apontamento e sinais algo semelhantes aos
do telégrafo de Morse se fizeram notados em curioso aparelho. Druso
ligou tomada, próxima e vimos um pequeno televisor em ação, sob vigorosa
lente, projetando imagens movimentadas em tela próxima, cuidadosamente
encaixada na parede, a pequena distância.
Qual se acompanhássemos curta notícia em cinema sonoro, contemplamos, surpreendidos, a paisagem terrestre.
Sob a crista de serra alcantilada e selvagem, destroços de grande
aeronave guardavam consigo as vítimas do acidente. Adivinhava-se que o
piloto, certamente enganado pelo traiçoeiro oceano de espessa bruma, não
pudera evitar o choque com os picos graníticos que se salientavam na
montanha, silenciosos e implacáveis, à maneira de medonhos torreões de
fortaleza agressiva.
Em pleno quadro inquietante, um ancião desencarnado, de semblante
nobre e digno, formulava requerimento comovedor, rogando à Mansão a
remessa de equipe adestrada para a remoção de seis das catorze entidades
desencarnadas no doloroso sinistro.
[...]A cena aflitiva parecia desenrolar-se ali mesmo.
Oito dos desencarnados no acidente jaziam em posição de choque,
algemados aos corpos, mutilados ou não; quatro gemiam, jungidos aos
próprios restos, e dois deles, não obstante ainda enfaixados às formas
rígidas, gritavam desesperados em crises de inconsciência.
Contudo, amigos espirituais, abnegados e valorosos, velavam ali, calmos e atentos.[...]
Em poucos instantes, diversos operários da casa puseram-se em marcha, na direção do local minuciosamente descrito.[...]
Foi então que Hilário e eu indagamos se não nos seria possível a
participação na obra assistencial que se processava, no que Druso,
paternalmente, não concordou, explicando que o trabalho era de natureza
especialíssima, requisitando colaboradores rigorosamente treinados.
Cientes de que o generoso mentor poderia dispensar-nos mais tempo,
aproveitamos o ensejo para versar a questão das provas coletivas.
Hilário abriu campo livre ao debate, perguntando, respeitoso, por que
motivo era rogado o auxílio para a remoção de seis dos desencarnados,
quando as vítimas eram catorze.
Druso, no entanto, replicou em tom sereno e firme:
— ue tomO socorro no avião sinistrado é distribuído indistintamente,
contudo, não podemos esquecer que se o desastre é o mesmo para todos os
qbaram, a morte é diferente para cada um. No momento serão
retirados da carne tão somente aqueles cuja vida interior lhes outorga a
imediata liberação. Quanto aos outros, cuja situação presente não lhes
favorece o afastamento rápido da armadura física, permanecerão ligados,
por mais tempo, aos despojos que lhes dizem respeito.
— Quantos dias? — clamou meu colega, incapaz de conter a emoção de que se via possuído.
— Depende do grau de animalização dos fluidos que lhes retêm o
Espírito à atividade corpórea — respondeu-nos o mentor. — Alguns serão
detidos por algumas horas, outros, talvez, por longos dias… Quem sabe?
Corpo inerte nem sempre significa libertação da alma. O gênero de vida
que alimentamos no estágio físico dita as verdadeiras condições de nossa
morte. Quanto mais chafurdamos o ser nas correntes de baixas ilusões,
mais tempo gastamos para esgotar as energias vitais que nos aprisionam à
matéria pesada e primitiva de que se nos constitui a instrumentação
fisiológica, demorando-nos nas criações mentais inferiores a que nos
ajustamos, nelas encontrando combustível para dilatados enganos nas
sombras do campo carnal propriamente considerado. E quanto mais nos
submetamos às disciplinas do espírito, que nos aconselham equilíbrio e
sublimação, mais amplas facilidades conquistaremos para a exoneração da
carne em quaisquer emergências de que não possamos fugir por força dos
débitos contraídos perante a Lei. Assim é que “morte física” não é o
mesmo que “emancipação espiritual”.
[...]— Todavia — reparou Hilário —, não serão atraídos por criaturas
desencarnadas, de inteligência perversa, já que não podem ser
resguardados de imediato?
Druso estampou significativa expressão facial e ponderou:
— Sim, na hipótese de serem surdos ao bem, é possível se rendam às
sugestões do mal, a fim de que, pelos tormentos do mal, se voltem para o
bem. No assunto, entretanto, é preciso considerar que a tentação é
sempre uma sombra a atormentar-nos a vida, de dentro para fora. A junção
de nossas almas com os poderes infernais verifica-se em relação com o
inferno que já trazemos dentro de nós.
[...]— Parece-me que não seríamos capazes de comentar um desastre de
grandes proporções, no campo dos homens, sem lhes insuflar o vírus do
medo, tanta vez portador do desânimo e da morte.
A palavra do orientador, serena e evangélica, reajustava-nos os impulsos menos edificantes.
Inegavelmente, a Terra jaz repleta de criaturas, tanto quanto nós,
algemadas a escabrosos compromissos, carentes de ação contínua para o
necessário reequilíbrio. Não seria justo atormentá-las com pensamentos
de temor e flagelação, quando através do bem, sentido e praticado,
podemos cada hora arredar de nossos horizontes as nuvens de sofrimentos
prováveis.
Assinalando-nos a atitude inequívoca de compreensão e de obediência,
como não podia deixar de ser, o chefe da instituição continuou em tom
afável, depois de ligeira pausa:
— Imaginemos que fossem analisar as origens da provação a que se
acolheram os acidentados de hoje… Surpreenderiam, decerto, delinquentes
que, em outras épocas, atiraram irmãos indefesos do cimo de torres
altíssimas, para que seus corpos se espatifassem no chão; companheiros
que, em outro tempo, cometeram hediondos crimes sobre o dorso do mar,
pondo a pique existências preciosas, ou suicidas que se despenharam de
arrojados edifícios ou de picos agrestes, em supremo atestado de
rebeldia, perante a Lei, os quais, por enquanto, somente encontraram
recurso em tão angustioso episódio para transformarem a própria
situação. Quantos milhares de irmãos encarnados possuímos nós, em cujas
contas com os Tribunais Divinos figuram débitos desse jaez? Entretanto,
não desconhecemos que nós, consciências endividadas, podemos melhorar
nossos créditos, todos os dias. Quantos romeiros terrenos, em cujos
mapas de viagem constam surpresas terríveis, são amparados devidamente
para que a morte forçada não lhes assalte o corpo, em razão dos atos
louváveis a que se afeiçoam!… Quantas intercessões da prece ardente
conquistam moratórias oportunas para pessoas cujo passo já resvala no
cairel do sepulcro?!… quantos deveres sacrificiais granjeiam, para a
alma que os aceita de boamente, preciosas vantagens na Vida Superior,
onde providências se improvisam para que se lhes amenizem os rigores da
provação necessária?! Bem sabemos que, se uma onda sonora encontra
outra, de tal modo que as “cristas; de uma ocorram nos mesmos pontos
dos “vales” da outra, esse meio, em consequência aí não vibra, tendo-se
como resultado o silêncio. Assim é que, gerando novas causas com o bem,
praticado hoje, podemos interferir nas causas do mal, praticado ontem,
neutralizando-as e reconquistando, com isso, o nosso equilíbrio. Desse
modo, creio mais justo incentivarmos o serviço do bem, através de todos
os recursos ao nosso alcance. A caridade e o estudo nobre, a fé e o bom
ânimo, o otimismo e o trabalho, a arte e a meditação construtiva
constituem temas renovadores, cujo mérito não será lícito esquecer, na
reabilitação de nossas ideias e, consequentemente, de nossos destinos.
Exemplo de processo de resgate coletivo
Entregara-se o chefe a mais longa pausa e, movido pelo propósito de
aprender, indaguei de Druso se ele mesmo não teria acompanhado algum
processo de resgate coletivo, em que os Espíritos interessados não
teriam outro recurso senão a morte violenta, como remate aos dias do
corpo denso, ao que o instrutor respondeu, presto:
— Guardo em minha experiência alguns casos expressivos que seria
justo relacionar, no entanto, reportar-nos-emos simplesmente a um deles,
pois nossas obrigações são inadiáveis.
Depois de momentos rápidos em que naturalmente apelava para a memória, comentou, benevolente:
— Há trinta anos, desfrutei o convívio de dois benfeitores, a cuja
abnegação muito devo neste pouso de luz. Ascânio e Lucas, Assistentes
respeitados na Esfera Superior, integravam-nos a equipe de mentores
valorosos e amigos… Quando os conheci em pessoa, já haviam despendido
vários lustros no amparo aos irmãos transviados e sofredores. Cultos e
enobrecidos, eram companheiros infatigáveis em nossas melhores
realizações. Acontece, porém, que depois de largos decênios de luta, nos
prélios da fraternidade santificante, suspirando pelo ingresso nas
Esferas mais elevadas, para que se lhes expandissem os ideais de
santidade e beleza, não demonstravam a necessária condição específica
para o voo anelado. Totalmente absortos no entusiasmo de ensinar o
caminho do bem aos semelhantes, não cogitavam de qualquer mergulho no
pretérito, por isso que, muitas vezes, quando nos fascinamos pelo
esplendor dos cimos, nem sempre nos sobra disposição para qualquer
vistoria aos nevoeiros do vale… Dessa forma, passaram a desejar
ardentemente a ascensão, sentindo-se algo desencantados pela ausência de
apoio das autoridades que lhes não reconheciam o mérito imprescindível.
Dilatava-se o impasse, quando um deles solicitou o pronunciamento da
Direção Geral a que nos achamos submissos. O requerimento encontrou
curso normal até que, em determinada fase, ambos foram chamados a exame
devido. A posição imprópria que lhes era característica foi
carinhosamente analisada por técnicos do Plano Superior, que lhes
reconduziram a memória a períodos mais recuados no tempo. Diversas
fichas de observação foram extraídas do campo mnemônico, à maneira das
radioscopias dos atuais serviços médicos no mundo e, através delas,
importantes conclusões surgiram à tona… Em verdade, Ascânio e Lucas
possuíam créditos extensos, adquiridos em quase cinco séculos sucessivos
de aprendizado digno, somando as cinco existências últimas nos Círculos
da carne e as estações de serviço espiritual, nas vizinhanças da arena
física; no entanto, quando a gradativa auscultação lhes alcançou as
atividades do século XV, algo surgiu que lhes impôs dolorosa meditação…
Arrebatadas ao arquivo da memória e a doer-lhes profundamente no
espírito, depois da operação magnética a que nos referimos, reapareceram
nas fichas mencionadas as cenas de ominoso delito por ambos cometido,
em 1429, logo após a libertação de Orleães, quando formavam no exército
de Joana d’Arc… Famintos de influência junto aos irmãos de armas, não
hesitaram em assassinar dois companheiros, precipitando-os do alto de
uma fortaleza no território de Gâtinais, sobre fossos imundos,
embriagando-se nas honrarias que lhes valeram, mais tarde, torturantes
remorsos além do sepulcro. Chegados a esse ponto da inquietante
investigação, pela respeitabilidade de que se revestiam foram inquiridos
pelos poderes competentes se desejavam ou não prosseguir na, sondagem
singular, ao que responderam negativamente, preferindo liquidar a
dívida, antes de novas imersões nos depósitos da subconsciência. Desse
modo, em vez de continuarem insistindo na elevação a níveis mais altos,
suplicaram, ao revés, o retorno ao campo dos homens, no qual acabam de
pagar o débito a que aludimos.
— Como? — indagou Hilário, intrigado.
— Já que podiam escolher o gênero de provação, em vista dos recursos
morais amealhados no mundo íntimo — informou o orientador —, optaram por
tarefas no campo da aeronáutica, a cuja evolução ofereceram as suas
vidas. Há dois meses regressaram às nossas linhas de ação, depois de
haverem sofrido a mesma queda mortal que infligiram aos companheiros de
luta no século XV.
— E o nosso caro instrutor visitou-os nos preparativos da reencarnação agora terminada? — inquiri com respeito.
— Sim, por várias vezes os avistei, antes da partida. Associavam-se a
grande comunidade de Espíritos amigos, em departamento específico de
reencarnação, no qual centenas de entidades, com dívidas mais ou menos
semelhantes às deles, também se preparavam para o retorno à carne,
abraçando, assim, trabalho redentor em resgates coletivos.
— E todos podiam selecionar o gênero de luta em que saldariam as suas contas? — perguntei, ainda, com natural interesse.
— Nem todos — disse Druso, convicto. — Aqueles que possuíam grandes
créditos morais, qual acontecia aos benfeitores a que me reporto,
dispunham desse direito. Assim é que a muitos vi, habilitando-se para
sofrer a morte violenta, em favor do progresso da aeronáutica e da
engenharia, da navegação marítima e dos transportes terrestres, da
ciência médica e da indústria em geral, verificando, no entanto, que a
maioria, por força dos débitos contraídos e consoante os ditames da
própria consciência, não alcançava semelhante prerrogativa, cabendo-lhe
aceitar sem discutir amargas provas, na infância, na mocidade ou na
velhice, através de acidentes diversos, desde a mutilação primária até a
morte, de modo a redimir-se de faltas graves.
— E os pais? — inquiriu meu colega, alarmado. Em que situação
surpreenderemos os pais dos que devem ser imolados ao progresso ou à
justiça, na regeneração de si mesmos? a dor deles não será devidamente
considerada pelos poderes que nos controlam a vida?
— Como não? — respondeu o orientador — as entidades que necessitam de
tais lutas expiatórias são encaminhadas aos corações que se
acumpliciaram com elas em delitos lamentáveis, no pretérito distante ou
recente ou, ainda, aos pais que faliram junto dos filhos, em outras
épocas, a fim de que aprendam na, saudade cruel e na angústia inominável
o respeito e o devotamento, a honorabilidade e o carinho que todos
devemos na Terra ao instituto da família. A dor coletiva é o remédio que
nos corrige as falhas mútuas.
Estabelecera-se longa pausa.
A lição como que nos impelia a rápidos mergulhos no mundo de nós mesmos.
Hilário, contudo, insatisfeito como sempre, perguntou, irrequieto:
— Instrutor amigo, imaginemos que Ascânio e Lucas, após a vitória de
que nos dá notícia, continuem anelando a subida aos Planos mais altos…
Precisarão, para isso, de nova consulta ao passado?
— Caso não demonstrem a condição específica indispensável, serão
novamente submetidos à justa auscultação para o exame e seleção de novos
resgates que se façam precisos.
— Isso quer dizer que ninguém se eleva ao Céu sem quitação com a Terra?
O interlocutor sorriu e completou:
— Será mais lícito afirmar que ninguém se eleva a pleno Céu, sem
plena quitação com a Terra, porquanto a ascensão gradativa pode
verificar-se, não obstante invariavelmente condicionada aos nossos
merecimentos nas conquistas já feitas. Os princípios de relatividade são
perfeitamente cabíveis no assunto. Quanto mais Céu interior na alma,
através da sublimação da vida, mais ampla incursão da alma nos Céus
exteriores, até que se realize a suprema comunhão dela com Deus, Nosso
Pai. Para isso, como reconhecemos, é indispensável atender à justiça, e a
Justiça Divina está inelutavelmente ligada a nós, de vez que nenhuma
felicidade ambiente será verdadeira felicidade em nós, sem a implícita
aprovação de nossa consciência.
O ensinamento era profundo.
Cessamos a inquirição e, como serviço urgente requer-ia a presença de
Druso, em outra parte, retiramo-nos em demanda do Templo da Mansão, com
o objetivo de orar e pensar.
.André Luiz
Trechos retirados do Livro Ação e Reação cap. 18 Resgate Coletivo . André Luiz /Chico Xavier